Prédio da instituição tem mais de 160 anos e passa por reformulações voltadas à representatividade cultural
Por Vanessa Centeno
A presença negra na região sul do Estado está representada no Museu da Baronesa (avenida Domingos de Almeida, 1490, bairro Areal, Pelotas). Com mais de 160 anos de existência, sediado junto ao Parque da Baronesa, o prédio passa neste momento por um processo de restauração. Foi fundado como instituição museológica em 1982, mas a casa que o sedia tem aproximadamente 160 anos. Foi fechado à visitação na pandemia e, em seguida, iniciaram as obras de manutenção necessárias. Durante a última década, o museu buscou sobretudo repensar o seu acervo levando em conta a representatividade negra.
Em 2018, a instituição recebeu um prêmio de 100 mil reais pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Com o “Projeto para a Visibilidade Negra no Museu da Baronesa”, foi contemplado com este valor destinado à modernização de algumas partes do Museu, para a compra de alguns equipamentos, visando as melhorias na pesquisa e na segurança. Esta foi a primeira premiação recebida pelo Museu da Baronesa.
No momento, sem uma data certa para a reabertura, a previsão inicial da entrega da obra é para o final deste mês. Há todo um processo a ser feito de remontagem do Museu peça por peça e sala por sala.
História que remonta ao Barão dos Três Serros
Vale resgatar a história por trás da edificação. O coronel e político Anibal Antunes Maciel, comprou a propriedade em 1863. Seu filho, Anibal Antunes Maciel Júnior, herdou a propriedade de sua mãe, Dona Filisbina Silva, em 1871. A chácara foi ampliada, ocupando uma área de sete hectares com varanda, capela, torre de banho, sala de costura, salão de festas, pátio central e jardins.
Anibal Antunes Maciel destacou-se por ter sido o primeiro no Brasil a conceder alforria a seus escravos em 1884. Por este ato, recebeu o título de “Barão dos Três Serros” decretado pelo Imperador Dom Pedro II. Dois anos após o falecimento do barão, em 1887, a baronesa voltou para sua cidade natal e a chácara passou a ser habitada por uma de suas filhas, Dona Amélia Anibal Hartley Antunes Maciel (Sinhá Amélinha). Foi ela quem tornou conhecido o local como o “Solar da Baronesa”.
A edificação, juntamente com o terreno, foi doada ao município de Pelotas em 1978. O Museu foi inaugurado em 1982, e é uma instituição cultural da Secretaria da Cultura da Prefeitura Municipal de Pelotas. Foi tombado como patrimônio histórico do município em 1985.
Reivindicação de representatividade negra
Atualmente, estão à frente da instituição, entre outros profissionais, a diretora Fabiane Rodrigues Moraes Loth e o professor Marcelo Hansen Madail, que é licenciado em Artes Visuais, bacharel em Conservação e Restauro e especialista em Geografia e História.
Marcelo trabalha na manutenção das peças do Museu e na pesquisa histórica, além de gerenciar as redes sociais. Atua no museu desde 2011 e conta que, logo ao chegar, a média de visitantes estava entre 8 mil e 9 mil visitantes por ano. Em 2019, na pré-pandemia, foi o último período em que esteve aberto à visitação cem por cento, alcançando mais de 19 mil visitantes. Ele acredita que as redes sociais contribuíram, fazendo a divulgação não só no Brasil, mas mundialmente. A divulgação nas redes sociais é simples, sem o uso de mídias pagas, mas, mesmo assim, tem alcançado visitantes latino-americanos, europeus e estadunidenses, entre outros.
Marcelo lembra que há um caderno de visitantes ao alcance do público para o registro de elogios e críticas, sendo um modo de saber o que pode ser melhorado. Um dos pontos altos foi a Vitrine do Século 19, exposta por muitos anos, que deixava as pessoas encantadas com a maneira de mostrar as peças antigas, sendo uma das queridinhas do público. No livro de visitas, as pessoas elogiavam a reconstituição da época da vitrine, escrevendo que tinham até vontade de viver naquele tempo.
Outras pessoas, entretanto, deixaram escrito no livro a lembrança de que o sangue dos seus ancestrais estava nas paredes daquela edificação. Começou, assim, um questionamento entre os funcionários do Museu em como contemplar à população negra que teve seus antepassados submetidos ao regime de escravidão. Os relatos das pessoas negras questionavam a ausência dos personagens negros escravizados e sua contribuição.
Marcelo comenta que, nas oportunidades em que trabalhou na portaria do Museu, viu pessoas saírem se sentindo mal e emocionadas por não verem o negro fazendo parte das exposições.
Dia do Patrimônio Histórico estimula mudanças
Em 2014, na segunda edição do Dia do Patrimônio Histórico, o tema escolhido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) foi a “Herança Cultural Africana”. Isso levou o Museu a elaborar uma exposição paralela a partir do próprio acervo, levando em conta as peças de temática sacra, em que representações de divindades de matriz africana foram mostradas conjuntamente a de santos católicos.
A ideia de sincretismo religioso foi trabalhada na relação entre os vários ambientes. No hall de entrada, por exemplo, havia uma sacristia com roupas usadas por padres. Noutros ambientes, estavam as divindades de matriz africana relacionadas aos santos da Igreja Católica.
Os funcionários do museu tiveram de superar seus limites em relação às religiões de matriz africana, buscando inclusive contato com pais de santo e outros especialistas, de forma a mostrar o acervo de forma mais adequada, dando nome às peças e criando a melhor contextualização histórica.
Houve muitas expectativas em relação ao Dia do Patrimônio Histórico e a reação do público. Até então, o Museu foi por muitos anos taxado como um museu de elite branca e ressaltar uma outra perspectiva foi um desafio. Colocar objetos que façam jus à presença do negro incomodou alguns, ao mesmo tempo em que buscou responder às críticas.
A repercussão da exposição relacionada às matrizes africanas e a presença do povo negro foi muito boa. E o público visitante, que deixou os comentários no caderno de opiniões, comentou: “Finalmente, já não era sem tempo”, “que essa atitude não seja a primeira e que não morra aqui”.
Herança cultural que não pode ser ignorada
A diretora Fabiane Loth comenta que se constatou que não havia mais possibilidade de o Museu não falar e deixar de canto a herança cultural africana. A partir de então, tiveram a contribuição da historiadora Flávia Alsino Sanes, que veio a suprir esta demanda do público com suas pesquisas. Houve até mesmo uma conscientização das pessoas da equipe museológica de como podem ocorrer situações racistas no cotidiano. Não somente o museu mudou, mas as pessoas que compartilharam desse processo também foram modificadas.
A diretora comentou que o sincretismo não é apenas dar nome aos santos católicos e divindades de matriz africana como se fossem sinônimos. Havia necessidade de reconstituir a longa história negra, que era o que as críticas pediam de fato ao museu no livro de visitas. A temática do Dia do Patrimônio, instituída pelo Ibram em 2014, levou à tomada de iniciativas, como o trabalho com os documentos das famílias com os registros dos nomes dos escravizados.
A Dona Sinhá Amélinha deixou, por exemplo, cadernos com registros daqueles escravizados que continuaram trabalhando no período pós-abolição, então recebendo ordenados. Ao contrário de ser um ponto final, isto leva à realização de entrevistas, a novas pesquisas e ideias para exposições.
Conforme a historiadora Flávia, eles buscaram expor a presença negra de uma maneira positiva, não apresentando somente a parte histórica do martírio, do castigo dos grilhões e, sim, trazer toda a influência cultural que a presença negra trouxe para a região.
Visibilidade negra
Começaram de maneira sutil a introduzir elementos em que a presença negra era mais marcante. Informações foram buscadas no testamento do Aníbal Antunes Maciel, o Barão de Três Serros. Sabe-se que, quando faleceu, deixou quantias para os escravizados. Mil réis para o cozinheiro, por exemplo. Deixou, assim, alguma estima aos que lhe serviram em sua vida. Para o historiador Marcelo, isso é importante porque não era comum na documentação da época. Também o copeiro e as amas de leite das suas filhas foram gratificados. Esses são apenas alguns detalhes entre as várias informações que estão surgindo nas pesquisas.
A vida de uma casa pode trazer aspectos relativos a como as pessoas coexistiram no período da escravidão e de desigualdade. As relações de afeto e como as pessoas trabalharam dentro da casa podem contribuir para a compreensão histórica.
No quarto das crianças, por exemplo, além da descrição do ambiente foi colocado um texto sobre as amas de leite que atendiam às filhas da baronesa. Na cozinha, quem eram as cozinheiras, as copeiras, como eram as suas lidas, quais temperos usavam nas comidas. A influência da mão da mulher negra que mexia o tacho tem sua importância reconhecida.
Espaços reconstituídos
O Museu da Baronesa tem 22 peças, dividido na parte que é aberta ao público e na parte que é usada para a administração, com as salas de conservação, direção e de documentação.
Marcelo informa que eles descobriram alguns anos atrás algumas fotos antigas na residência que sedia o Museu. Era uma casa com um salão de festas seguido pela garagem e outra construção com um telhado que tinha abas, portinhas e janelas. Tudo leva a crer, segundo os relatos dos descendentes que ainda estão vivos, que ali fosse uma senzala dos escravizados que cuidavam da casa: a copeira, cozinheira, engomadeira, passadeira e as amas de leite. Existia uma separação entre os escravos de dentro da casa, mais sofisticados, pois precisavam atender à residência, e os da lida externa, que cuidavam dos animais, hortas, jardinagem da chácara e de tudo em volta do prédio.
Onde atualmente é o escritório da administração, nos fundos do antigo salão de festas, sabe-se que havia quartinhos, em que ficavam os serviçais da casa até o período pós-abolição. Os historiadores imaginam que os escravos domésticos viviam nesta parte, disponíveis para atender o interior da casa.
Outras atividades
Também vêm sendo desenvolvidas palestras e encontros na primeira terça-feira de cada mês. O evento anual do Sopapo foi inspirado no músico Giba-Giba (1940-2014), nascido em Pelotas. Sopapo é o nome do tambor que os negros tocavam nas senzalas e charqueadas, que era feito com couro de boi e de cavalo com cascas de árvores. Eram os materiais que eles encontravam e que também eram vistos como uma forma de manter o contato com seus santos. O evento Sopapo, promovido pelo Museu, marca as atividades do ano, com feiras quilombolas, desfile de moda com temática africana, oficina de turbantes, etc.
Rever o passado para futuro diferente
O pesquisador Marcelo coloca em questão se eram as sinhás que mexiam os tachos, e se as mulheres negras não tinham capacidade de fazer os doces, como alguns afirmam. Há que se considerar que várias influências que vieram de Portugal mesclam-se às comidas de santo, aos temperos e à música de origem africana.
As peças do museu descrevem e levam as pessoas e, principalmente as crianças, a pensar sobre essa história. Um número enorme de visitantes são os pequenos de origem humilde da rede pública e um contingente expressivo de crianças negras. “Eles viam aquele monte de manequins brancos, com aquele monte de roupas, e não se enxergavam ali”, diz o historiador.
A partir das novas diretrizes, buscou-se permitir aos jovens enxergar a sua própria africanidade. A música, os temperos e os sabores espelham não simplesmente empregadas, mas mulheres dignas.
Contatos com o Museu podem ser feitos pelo Facebook e Instagram.
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