Frankenstein: O verdadeiro horror habita nas sombras

Experimentações científicas do século XIX e mitologia grega se fundem em uma narrativa instigante que completa 205 anos de sua publicação    

Por Isabella Barcellos      

Obra literária colocou em questão as relações entre criador e criatura que passam a inspirar várias histórias de terror Foto: Reprodução da Internet

 

Em 1815 o Monte Tambora (um vulcão complexo ativo, localizado na Indonésia) entrou em erupção. O fenômeno atípico lançou toneladas de poeira na atmosfera, bloqueando a luz solar e o verão no hemisfério norte. Por consequência, Mary Wollstonecraft Godwin, seu amante Percy Shelley e o escritor John Polidori estão confinados em uma mansão localizada perto do Lago Léman. O então dono da propriedade, Lorde Byron e seus convidados passam dias trocando reflexões e lendo histórias de horror uns aos outros. Depois de noites de discussão e trocas, a jovem Mary é assombrada por um pesadelo: Um estudante tenta oferecer vida a uma criatura a partir da eletricidade. Entre os questionamentos éticos das novas tecnologias e a perspectiva de modernidade mais vibrante do que nunca, surge a primeira obra literária do gênero ficção científica em 1818: “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”.

 

    “Prometeu Acorrentado” – Pintura de Peter Paul Rubens (entre 1611 e 1612)     Imagem: Reprodução/Museu da Filadélfia

 

A besta que julgamos conhecer

Todos temos a impressão de conhecer a história de Frankenstein: Um monstro enorme, verde, com parafusos no pescoço e suturas por todo o corpo. O filme protagonizado por Boris Karloff (“Frankenstein”, 1931) não foi a primeira adaptação cinematográfica da obra de Shelley, mas definitivamente moldou o imaginário coletivo. Graças ao sucesso da obra de James Whale, a criatura de Victor Frankenstein foi retratada tal qual Karloff em centenas de outras obras ao longo dos anos. Além da aparência, aprendemos que o monstro é resultado do trabalho de um cientista maluco e sua monstruosidade assusta todos os humanos.

Primeiramente, é importante estabelecer o que de fato o leitor encontra ao se deparar com o romance base de todo esse imaginário: Frankenstein é um romance epistolar (ou seja, narrado através de cartas) que narra, além da criação de uma criatura a partir de cadáveres e eletricidade, as desventuras de Victor Frankenstein e seus questionamentos sobre a vida, a existência e todo o horror em torno de suas tragédias pessoais. O experimento do cientista na verdade não possui um nome próprio, possui pele amarela e passou a ser conhecido pelo nome do seu inventor. Segundo o próprio livro, “sua pele amarelada mal dava conta de encobrir o mecanismo de músculos e artérias debaixo delas. Seu cabelo era de um negro lustroso; seus dentes eram de um branco perolado. Tais características luxuriantes, porém, apenas tornavam mais horrendos o contraste com o rosto enrugado, os lábios negros e os olhos aquosos […]” (página 131, segundo edição da editora Companhia das Letras, 2018).

Outra informação de suma importância para a história é sua relação com a mitologia grega. Segundo Thomas Bulfinch, em sua obra O Livro de Ouro da Mitologia, Prometeu era um titã e criou os homens com terra e água, oferecendo a eles uma aparência semelhante à dos deuses. Ele rouba fogo dos céus com a ajuda de Minerva e garante à sua criação superioridade perante todos os outros animais. Os deuses do Olimpo, em fúria, criam Pandora: a primeira mulher do mundo. A mortal desenvolve afeição por Prometeu e seu irmão, Epimeteu, que guardava uma caixa com elementos malignos em sua oficina. Tentada pela curiosidade, Pandora abre a caixa e espalha a maldade e o caos entre a humanidade. E, para complementar a vingança, Prometeu é acorrentado no alto do monte Cáucaso e amaldiçoado a ser devorado por um pássaro durante toda a eternidade.

 

            Filme protagonizado por Boris Karloff (“Frankenstein”, 1931)  moldou o imaginário coletivo        Imagem: Reprodução Internet

 

A obra literária em si:  O que devemos esperar?

A Era Vitoriana é o período entre 1837 a 1901, quando a Rainha Vitória governou o Reino Unido e houve muitas mudanças na estrutura da sociedade inglesa, tanto economicamente quanto em seu campo cultural. Ainda que possa ser considerada de caráter conservador e moralista, esse período foi berço de diversas narrativas que se basearam em temas escandalosos e controversos para debater a natureza humana. Além disso, as narrativas nesse formato passam a ganhar mais espaço tanto no cotidiano dos trabalhadores comuns quanto nas discussões em ambientes acadêmicos. Frankenstein é precursor de diversos romances importantes daquele contexto na história da literatura ocidental, como “O Retrato de Dorian Gray”, “Drácula”, “O Médico e o Monstro”, “O Morro dos Ventos Uivantes”, etc.

Partindo desse ponto, Mary Shelley deu à luz um romance de extrema complexidade. A narrativa começa com as cartas do capitão Robert Walton para sua irmã. O navio comandado por Walton fica preso no mar congelado e a tripulação avista uma criatura imensa e desfigurada viajando pela neve em um trenó puxado por cães. Assustados, os embarcados seguem viagem e se deparam com um homem doente, largado na neve. O homem se apresenta ao capitão como Victor Frankenstein e começa a contar sua história.

O “cientista maluco” apresentado por adaptações do audiovisual não condiz com a personalidade introspectiva e melancólica daquele que dá nome ao livro. Nascido em uma família amorosa e aristocrática, a infância do protagonista é retratada como feliz e saudável. O jovem Victor Frankenstein começa a se apaixonar pelas ciências da natureza durante seu período na Universidade de Genebra. Os experimentos com eletricidade e sua reação em seres vivos o levam a experimentações consideradas arriscadas pelo corpo docente. Após anos de tentativas frustradas e imersões por cemitérios da região, nasce a criatura. O orgulho do próprio trabalho se transforma em horror: Victor Frankenstein abandona sua criação à própria sorte.

 

Cultura midiática convive com representações da criação de Mary Shelley, a exemplo da animação Scooby-Doo   Imagem: Reprodução Internet

 

A sombra no que se considera humano

Durante todo o livro o leitor se depara com críticas ácidas ao tratamento que a sociedade da época oferecia a quem se distanciava das normas sociais. A criatura vira “o outro”, uma representação viva do desconhecido que causa prejuízo ao bem social apenas por existir. A criação de Frankenstein nasce pura e com o coração repleto de bondade, mas por conta do preconceito alheio se transforma em um ser consumido pelo rancor, corrente de pensamento defendida por Rousseau e por muitos dos pensadores influenciados pelo Iluminismo. Quando abandona sua criação, Frankenstein também abandona a responsabilidade perante seus atos, cegado pelo medo do ostracismo.

Olhando por essa perspectiva, é difícil não pensar em outros romances da época que abordam o declínio de uma mente sã, como “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Bronte. Heathcliff e a criatura se encontram abraçando a violência e a solidão como maneira de se proteger da dor causada por pessoas ao redor. A obra prima de Shelley também abraça questões filosóficas que posteriormente seriam associadas à corrente filosófica da pós-humanidade: o que resta à humanidade a partir do surgimento de máquinas? O quanto isso afeta o que a sociedade entende por ser a realidade? O que faz de alguém um verdadeiro ser humano? Em seu “Prometeu moderno”, Mary Shelley evoca o medo não a partir da criatura deformada de seu protagonista, mas pela irresponsabilidade do próprio homem em lidar com o caos.

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