Os doces de Pelotas são considerados parte do patrimônio cultural imaterial da região, mas também coexistem com tendências globais
Por Isabella Barcellos
A passagem do tempo transforma nossas vidas por completo, tanto no individual quanto no coletivo. Portanto, algumas grandes tradições se transformam ou são perdidas com o avanço dos anos. Com a grande adesão do público às tendências globais de alimentação, hábitos locais como o consumo de doces finos podem se tornar obsoletos? Essa pergunta ganha um sentido muito especial no contexto cultural de Pelotas, em que os doces simbolizam as diversas mudanças que a cidade passou ao longo da sua história.
História marcada por hábitos gastronômicos
Entre tantos títulos que uma cidade pode receber, Pelotas (localizada no extremo sul do Rio Grande do Sul) foi agraciada com um título açucarado: A cidade do doce. E grande parte do patrimônio local é, direta ou indiretamente, relacionado a este título. O princípio deste legado começou com o ciclo do charque: As condições geográficas da cidade e o trabalho intenso da mão de obra escrava alavancaram o desenvolvimento econômico da região com a produção de charque. Em uma sociedade enriquecida, doces como camafeu e fatia de Braga, vindos das tradições portuguesas, passaram a ser preparados e oferecidos em comemorações, jantares e saraus.
Concomitantemente, o Brasil passava por uma forte política de imigração europeia promovida pelo governo imperial. Imigrantes da Alemanha, Itália, França e Espanha foram a maioria na construção de colônias da antiga Pelotas. Tanta diversidade cultural contribuiu para o surgimento de novas tradições que resultaram na criação de doces únicos para o patrimônio imaterial da cidade.
Segundo o Dossiê de Registro da Região Doceira de Pelotas e Antiga Pelotas, após “o fim do período áureo das charqueadas, os doces finos saíram do interior dos casarões e ganharam o espaço público da cidade, principalmente para, junto aos doces coloniais, tornarem-se fonte de renda de muitos pelotenses”.
A atualidade e suas demandas
Com o passar dos anos, o consumo de guloseimas com derivados de leite (leite condensado e doce de leite, por exemplo) ganhou popularidade no território brasileiro. Além disso, os produtos ultraprocessados passaram a fazer cada vez mais parte da rotina para grande parte da população, o que por consequência também distorce os conceitos de sabor e a qualidade da alimentação (tanto em nutrientes quanto em variedade cultural). Os doces coloniais, antes amplamente consumidos, passaram a ser substituídos por biscoitos, chocolates, sorvetes e, recentemente, até mesmo sobremesas estrangeiras como brownies e cookies ganharam mais popularidade entre os jovens.
O mercado pelotense passou a se adaptar às demandas do público com rapidez. Em um primeiro momento, os ingredientes tradicionais eram os seguintes: Ovos, açúcar, amêndoas, nozes, coco, pêssego e ameixa. Atualmente, os balcões das docerias e cafeterias oferecem cada vez mais opções que se utilizam do leite condensado como ingrediente básico: Bombons de brigadeiro, branquinho, chocolate, com confeitos multicoloridos e as conhecidas “trouxinhas” de diversos sabores. E, para além dos novos sabores, o tamanho dos doces aumentou consideravelmente, ocupando mais e mais espaço nas vitrines.
A partir destas informações, pode-se concluir que são muito poucos os doces que podem ser considerados tradicionais pela tradição pelotense. Em 2006, um processo conduzido por empreendedores pelotenses (com apoio do SEBRAE/RS) definiu 15 doces consagrados como tradicionais: amanteigado, beijinho de coco, bem-casado, broinha de coco, camafeu, doces cristalizados de frutas, fatias de Braga, ninho, olho-de-sogra, papo de anjo, pastel de Santa Clara, queijadinha, quindim, trouxas de amêndoa e panelinha de coco.
O polêmico sucesso de vendas
Um doce que dispensa apresentações aos pelotenses é o bombom de morango. Sucesso de vendas na Fenadoce e em todas as confeitarias da cidade, sua presença é requisitada em grande parte das comemorações locais. Entretanto, a partir dos dados já citados, podemos chegar a uma simples conclusão: O Bombom de Morango não é um doce tradicional. O morango, o leite condensado e o chocolate só foram incorporados na confeitaria local a partir da demanda do público e da produção local.
O morango é um fruto de origem europeia que muito se beneficia do clima subtropical sul-brasileiro para o cultivo em maior escala. E, atualmente, Pelotas é o quarto maior produtor do fruto no estado do Rio Grande do Sul. Dezenas de famílias se beneficiam diretamente do cultivo e colheita anual, contando com a ajuda de organizações como a Secretaria de Desenvolvimento Rural, Emater, Embrapa e do Sindicato de Trabalhadores Rurais. Em 2022, seis edições da Feira do Morango foram contabilizadas pela cidade, rendendo lucros aos produtores e frutos de boa qualidade para os consumidores.
O estado de tradição, por si mesmo, implica em moldar e categorizar determinadas práticas. Em entrevista ao diretor do Museu do Doce, Roberto Heiden, o professor Fábio Cequeira explica as peculiaridades das receitas modernas perante a tradição. Ao ser perguntado sobre o bombom, ele questiona: “O que pensar disto, como pesquisador que se defrontou com o caráter genuíno das tradições doceiras: de modo ranzinza, negando a validade das preferências atuais? Ou pensando, sim, que o novo cabe dentro do sentido de uma cidade doceira?”.
O professor também pontua: “Passadas algumas décadas, novas pesquisas falarão do ‘bombom de morango’ – que, na verdade, exagerando um pouco, encontra-se à venda em qualquer shopping center do país – como patrimônio cultural, pois, na ‘cidade doceira’, assim agora reconhecida, o antigo, que se quer salvaguardar, precisa do novo, para lhe garantir um sentido de pertença ao tempo, sem o que qualquer salvaguarda é nula.”
A proprietária da confeitaria Imperatriz Doces Finos desde 1996, Maria Helena Jeske, afirma a preferência do público por misturas de sabores: “O público hoje em dia gosta muito da mistura de sabores: Por exemplo, o quindim tradicional é feito de gemas, açúcar e coco. Atualmente, temos quindins de morango, kiwi, leite condensado […] Sempre trazendo essa mistura com algo novo que está nascendo no mercado com algo já conhecido”.
A resposta do tempo
Pode-se concluir que, apenas com a passagem do tempo é possível determinar se doces criados mais recentemente prevalecerão nas vitrines e no imaginário popular enquanto outros caem no esquecimento. Se o patrimônio por um lado prevalece intacto, as demandas populares se transformam a cada dia. Há 10 anos, alguns dos doces tradicionais poderiam ser vistos como antiquados, mas, atualmente, são apreciados por sua composição simples e livre de laticínios pelo público vegano ou até mesmo por quem tem predileção por doces “mais naturais”.
Maria Helena ressalta a permanência dos doces tradicionais na memória coletiva: “A novidade se mostra importante para nós do mercado. Sempre tem aquele jovem que busca por um sabor diferente, mas ele nunca deixa os doces tradicionais de lado por saber que tem algo por trás dele […] As empresas costumam apresentar como ‘carro chefe’ estes doces tradicionais”.
Existe espaço de sobra para a experimentação e degustação de novos sabores envolvendo a cultura doceira, ainda que o patrimônio imaterial permaneça catalogado como se encontra hoje. O que se ressalta importante é conscientizar a população (tanto em cenário local quanto nacional) o que são os doces coloniais e de que eles são feitos. Na entrevista citada, Fábio Cerqueira explica que o status de patrimônio afeta a percepção pública, “tanto no sentido de haver uma preocupação maior em preservar formas tradicionais de produzir os doces, como também em passar a ser mais crítico com a relação ao abandono de antigas receitas, tão somente porque o gosto atual, ou as imposições do mercado assim determinam.”.
Nesse cenário, a existência e a manutenção do Museu do Doce se fazem cada vez mais necessárias. Só é possível conscientizar a população sobre esse passado a partir de intervenções educacionais e políticas públicas de apoio à cultura. A tradição doceira pelotense conta sobre a história do extremo sul rio-grandense em cada detalhe, desde a vinda dos primeiros charqueadores, até a participação de afro-brasileiros e imigrantes em sua produção manufaturada e, por fim, sobre o desenvolvimento econômico regional.
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