Imagem tocante no filme policial “A Suspeita”

Drama tem enredo com fragilidades, mas ganha com uma incrível atuação e uma representação sensível dos efeitos do mal de Alzheimer     

Por Giéle Sodré         

A atuação de Glória Pires como Lúcia é um destaque da produção            Fotos: Divulgação/Imagem Filmes

“A Suspeita”, filme protagonizado por Glória Pires, estreou no 50º Festival de Cinema de Gramado, ocorrido neste ano, e lhe rendeu o prêmio Kikito de Melhor Atriz, já indicando o que é possível esperar do filme dirigido por Pedro Peregrino e com produção da própria Glória.

Na trama, somos apresentados à Lúcia (Glória Pires), uma comissária da inteligência da polícia do Rio de Janeiro que, após ser diagnosticada com Alzheimer precoce, luta para fechar seu último caso antes da aposentadoria forçada pela doença. Como se isso não fosse o suficiente, ela é levada a ter que lidar com a corrupção policial em seu local de trabalho e com a suspeita de que ela teria cometido uma queima de arquivo, assassinando duas pessoas.

O longa acompanha o fim da lucidez de Lúcia conforme a doença se agrava e a narrativa nos dá a sensação de peças faltando, assim como ocorre na mente da protagonista. A personagem fica entre a cruz – seu trabalho ao qual dedicou a vida sendo corrompido e destruído – e a espada – sua própria mente se destruindo, perdendo sua noção de tempo, espaço e memórias. Lúcia ainda se nega a aceitar um destino de esquecimento em que nada de seu esforço e dedicação teriam valido a pena.

Embora categorizado como um suspense policial, “A Suspeita” poderia muito bem se encaixar como um drama psicológico. O sofrimento íntimo que a atriz Glória consegue passar em sua atuação como Lúcia é de um brilho magistral. Demonstra a maneira como seu cérebro não mais acompanha o tempo e os acontecimentos da mesma forma, conforme a doença vai avançando. Em seus momentos de desespero, ela luta pela lucidez, por manter memórias, por não esquecer e não ser esquecida.

Os dilemas de Lúcia são muito mais o foco do filme do que a própria investigação. Sua dedicação à polícia a impediu de formar uma família, algo que a mesma expressa com dor e desespero, refletindo se seu trabalho valeu tudo aquilo que sacrificou por ele.

A solidão de Lúcia é dolorida, reflete a vida que, em algum momento, poderia ter tido e pressente seus temores mais profundos. Há o medo de se ver desamparada em seus momentos mais frágeis, quando não mais puder exercer aquilo pelo que batalhou e não tiver mais ninguém à sua volta que cuide de sua integridade física. Seu tio, um padre mais velho, não pode cuidar dela por causa de suas obrigações da igreja. Lúcia se perde durante atividades que podem causar danos físicos e ressente-se de relacionamentos sobre os quais abriu mão.

O drama psicológico da personagem compete com elementos do suspense policial na narrativa do filme

 

A fotografia do filme reflete o estado mental da protagonista. Os cortes e os planos soam por vezes como retalhos soltos de uma narrativa a qual perdemos uma parte, mesmo que ainda possamos acompanhar a história. Os lampejos mentais de Lúcia também são acompanhados pela imobilidade da câmera, pelo desfoque em volta da personagem e pelos efeitos luminosos. As imagens refletem o que se passa com a policial  com o encontro e a perda de foco nos objetos. São eles que ajudam ela a lembrar-se das suas atividades do dia a dia. É como se a história fosse vista por dentro do cérebro de Lúcia em conflito consigo mesma.

A narrativa trata da vida da personagem, mas o enredo acaba por se perder muito na forma típica de um suspense policial. Não acompanhamos de onde saem as conclusões de quem estaria envolvido nos acontecimentos, além da superficialidade a que Lúcia se apega, pelas informações que ela mesma rabisca e faz lembretes repetitivamente enquanto investiga. É um roteiro fraco, ainda que brilhe com a atuação de Glória Pires e sua franqueza e sutileza ao lidar com a decomposição da mente humana pelo mal de Alzheimer. Ao acompanharmos como Lúcia se perde, nós mesmos nos perdemos na história que estamos acompanhando.

Mesmo assim, é um filme tocante que nos carrega pela mente perdida de uma pessoa com ideais e missões que vê todo um futuro e um passado ruindo frente a algo que não pode ser mudado. É uma imagem vívida do que a doença causa e uma atuação sensível e de impressionante maestria para o gênero.

Uma pedra preciosa do cinema nacional que, embora não tão bem lapidada, ainda brilha com diferentes cores lindamente.

Veja o trailer do filme que está disponível nos serviços de streaming Amazon Prime Video e Youtube.

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