Por Milena Schivittez
Problema para fazer reportagem da revista Esquire deu origem a um texto célebre
Serendipitoso. Adjetivo masculino. Pessoa com capacidade de fazer descobertas úteis ou felizes.
Essa é a forma como Gay Talese se descreve, serendipitoso. E teria como descrevê-lo de outra forma? Foi a serendipidade de Talese que o levou a escrever uma reportagem que se tornaria um marco do Jornalismo Literário, um perfil de Frank Sinatra, sem Frank Sinatra.
Em 1965, Gay Talese ficou encarregado de entrevistar Frank Sinatra para um artigo da revista Esquire que seria capa da edição. Na época, Sinatra estava prestes a fazer 50 anos, ia protagonizar um especial de Natal para a televisão e tinha um documentário sobre sua vida prestes a estrear.
Talese ia escrever um perfil de Sinatra, explorar um pouco mais essa figura tão conhecida da música estadunidense. Contudo, Sinatra desistiu de conceder uma entrevista. Estava resfriado. Em uma situação dessas, qualquer outro jornalista diria “a pauta caiu”, viraria as costas e iria embora.
Talese, dotado de serendipidade, resolveu que iria produzir o perfil mesmo assim.
Sinatra era uma pessoa pública e, como toda pessoa pública, tinha sua vida exposta para seus admiradores e críticos. Seus affairs saíam nas colunas de fofoca, seus fãs o perseguiam na rua e nos estabelecimentos, sabiam por onde ele passava e corriam para encontrá-lo. Ele concedia entrevistas, seus filhos eram reconhecidos, era difícil encontrar um americano que não soubesse pelo menos um detalhe da vida de Sinatra, quiçá impossível.
O que tornaria “Frank Sinatra está resfriado” um símbolo?
Impossibilitado de entrevistar Sinatra, Talese resolveu traçar um perfil de Sinatra através das pessoas ao redor dele. Quem era o Frank Sinatra pai? Chefe? Amigo? Filho? Companheiro? Faces até então desconhecidas por aqueles que só conheciam um, o Sinatra artista.
É destrinchando as relações com o Rat Pack (como era conhecido seu grupo de amigos artistas), sua família e seus funcionários, coletando testemunhos e entrevistas dos mais próximos do cantor que Gay Talese vai construindo uma imagem de um Sinatra diferente e até mesmo dicotômica.
Sinatra era poderoso, irreverente, fiel aos seus chegados e eles ainda mais fiéis àquela figura que Gay descreve, muitas vezes, como Il Padrone. Era sensível e implacável. Era generoso, mas sabia ser difícil quando contrariado. Era alguém que todos respeitavam, desde seus familiares até seus adoradores. Suas vontades estavam acima de qualquer coisa e todos estavam a postos para que ele não fosse incomodado com nada além do necessário.
As pessoas queriam estar ao redor de Sinatra de qualquer forma, era impossível vê-lo sem sua “gangue” em volta. Em um certo momento, Talese relata uma situação na qual só havia um lugar na fileira de Sinatra, para assistir uma luta em Las Vegas, e o cantor Joey Bishop deixa a mulher para trás para poder sentar-se próximo do artista.
Esse era o Frank Sinatra que Gay Talese nos apresentou. Sinatra além das baladas românticas, do charme, de Hollywood e da fama.
Aos poucos, Talese vai construindo, destruindo e reconstruindo essa imagem quase santa de Sinatra, na qual seus companheiros são devotos fervorosos. Mesmo cheio de defeitos, é quase impossível não sentir Frank Sinatra como uma figura imaculada através das descrições feitas pelo jornalista. É assim que todo mundo o enxergava, talvez tenha sido a única forma de enxergá-lo.
Talese conseguiu captar os diferentes Sinatras presentes em um único astro, como se mesmo sem conhecê-lo diretamente, o entendesse. E é possível dizer que sim, ele o entendia. Gay e Frank têm origens próximas, são ítalo-americanos, filhos de imigrantes e excepcionais em suas áreas. São uomini rispettati, homens de respeito, grandiosos, brilhantes.
É de forma crua e direta e ao mesmo tempo com uma estrutura narrativa próxima de um romance de ficção, que Gay Talese vai nos apresentando o artista de um jeito nunca visto antes, fazendo de “Frank Sinatra está resfriado” uma aula de Jornalismo Literário, uma expressão da arte não-ficcional. Um astro pelas palavras de um ícone.
O texto completo pode ser lido na coletânea “Fama e Anonimato”, lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras.
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