Futuro distópico na série “O Conto da Aia”

Por Nathianni Gomes da Cruz

Produção faz analogias com o contexto político e social no século atual

A série “The Handmaid’s Tale”, ou “O conto da Aia”, na tradução para o português, é uma série norte-americana baseada no livro de mesmo nome, escrito pela canadense Margaret Atwood, em 1985.

Com três temporadas e disponíveis no Brasil pelo serviço de streaming Globoplay e na FOX Premium, a série Original do Hulu aborda assuntos bastante recorrentes e intensos do atual momento político mundial.

Foi vencedora de oito prêmios Emmy, incluindo o de Melhor Série Dramática de 2017, e tem direção de Bruce Miller.

Era uma vez a “América” 

Ao longo de 36 episódios em três temporadas, somos imersos em um Estado teocrático e ditatorial. O fundamentalismo religioso toma grandes proporções após um ataque terrorista matar o presidente dos EUA e um grupo intitulado Filhos de Jacó tomar o poder. Os golpistas suspendem a Constituição, e, assim, constroem as regras de Estado baseadas em interpretações da Bíblia.

Os Estados Unidos se tornam a República de Gilead. Esse Estado tem como base a superioridade do homem, as vontades de “Deus”, e a submissão das mulheres, que passam a fazer parte de castas com diferentes funções servis.

Propriedade estatal

Em Gilead, a submissão da mulher é constitucional. Essa mudança foi gradual, e como podemos acompanhar na trama, aconteceu primeiro com a revogação do direito da mulher de trabalhar, e, depois, com o bloqueio dos seus bens. Para então, em pouco tempo, as mulheres terem todos os seus direitos revogados. 

Somos apresentados a Offred, interpretada por Elisabeth Moss, uma aia enviada à família de um comandante dos Filhos de Jacó. As aias fazem parte dessa casta que faz o papel de barriga de aluguel do Estado, são “o útero com pernas”, como elas se descrevem durante a trama.

As aias são a parcela de mulheres ainda férteis, que são recrutadas e raptadas de suas famílias por conta da queda de natalidade e infertilidade em massa. Passam a serem receptáculos dos filhos dos comandantes e suas esposas estéreis.

Offred não é o nome real dessa mulher que acompanhamos, com a atriz Elisabeth Moss no papel. Nessa ficção aterrorizante, temos vislumbres de como era a vida da aia antes do Estado ser derrubado. Descobrimos que seu nome é June, que, nessa realidade, passou a ser “Do Fred”, ou seja, “Of Fred”, seu comandante, interpretado por Joseph Fiennes.

O ponto central que permite toda a barbárie que se instala é o preceito bíblico de Gênesis 30:1:3: “Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, se não morro. E ela disse: Eis aqui minha serva Bila, coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela”. 

Essa “coabitação” não é amigável, agradável ou qualquer concepção tecnológica aceitável como se pode pensar. “Bom, mas existe, inseminação artificial e implantação voluntária no útero”, alguém pode pensar à primeira vista. Mas, aqui, toda a ciência é negada. As cerimônias, nas quais as aias são obrigadas a participar, são verdadeiras violações aos seus corpos. Sem falar da violação psicológica praticada contra elas em todos os momentos.

As cores também oprimem

As mulheres são o elo em comum em “O Conto da Aia” – ao mesmo passo em que não possuem qualquer elo, já que o Estado totalitário faz questão de destruir qualquer interação de verdade entre elas.

Aqui, nenhuma mulher possui qualquer papel decisório, mesmo que algumas, como as esposas, achem que possuem algum controle. Na verdade, são iludidas com uma realidade deturpada: são oprimidas e opressoras de outras mulheres em posições inferiores. E as cores fazem parte dessa realidade.

Para explicar melhor: todas as castas possuem cores específicas. 

O azul escuro das “esposas” é atribuído a Virgem Maria. É opressivo e frio. Elas são as mulheres que odeiam a presença das aias e possuem um ciúme doentio destas. Fazem de suas vidas um verdadeiro inferno – além de todo o horror já bastante sofrido.

O uniforme vermelho das “aias”, junto com seus chapéus brancos que cobrem as laterais dos olhos, torna-as fáceis de serem percebidas em qualquer lugar. Elas, no entanto, não transitam por muitos. Estão no mercado, na casa a qual foram designadas, em algum parto ocasional e raro de outra aia, na vizinhança que habitam. 

O uniforme verde das “Marthas” as designa como as mulheres servis da casa, aquelas que limpam, cozinham, e que são como governantas da casa. O marrom, das “tias”, identifica como aquelas com a autoridade e responsabilidade de “treinar” as aias. Colocam ordem e medo através de torturas e humilhações. E, assim, as aias tornam-se inimigas uma das outras. 

Assim, temos uma realidade na qual a esposa é a honra do lar e da família, aos olhos da sociedade sobre o seu marido. A aia é aquela que dará um filho a ele e a sua esposa. As Marthas servem à sua casa. E as tias colocam ordem para que nenhuma aia se rebele contra o seu comandante.

Todo o sistema gira em torno do homem, com mulheres sendo satélites– e forçadas a não perceberem que são as verdadeiras protagonistas de suas histórias.

Qualidade da série

Os primeiros episódios da segunda temporada levantaram inúmeros argumentos e questões sobre a trama. A produção foi comparada à “torture porn”, um gênero cinematográfico que visa dar prazer ao espectador com violência sádica.

Lisa Miller, do veículo The Cut, levantou a questão: “é feminista ficar vendo mulheres sendo escravizadas, degradadas, espancadas, amputadas e estupradas?”, ao anunciar que não assistiria mais a série. 

Apesar dos episódios sim, serem chocantes, tem algo que ainda a torna boa. Margaret Atwood escreveu o livro, que é o guia para a trama televisiva, baseado em acontecimentos sociais e políticos do começo dos anos 80. Projetou um futuro fictício sem as mais comuns suposições sobre um futuro distópico, ou seja, sem naves espaciais e tecnologia de ponta. 

De acordo com a autora, “ficção científica tem monstros e naves espaciais, a ficção especulativa poderia acontecer de verdade”. Quão real e assustador pode se tornar “O Conto da Aia” se comparado à realidade da política mundial nas últimas décadas? E, especialmente, nos últimos cinco anos, em governos que subjugam mulheres, com a ascensão do fundamentalismo cristão e críticas à liberdade feminina e de seus corpos?

“É entretenimento ou uma profecia política aterrorizante? Pode ser ambos? Eu não antecipei nada disso quando estava escrevendo o livro”, explicou a autora em entrevista para o jornal americano The Guardian.

Por isso, mais que uma obra feminista, a série “O Conto da Aia”, complementando a obra literária de Atwood e adicionando elementos atuais de tecnologia e modernidades (como as redes sociais, por exemplo, em flashbacks que ocorrem à personagem principal), traz uma trama ainda mais chocante, fazendo com que o público compare a realidade com a ficção, ao perceber que essa história poderia facilmente se tornar a nossa realidade. 

Ou seja, há uma ligação entre processar a realidade através da ficção – e é o simbolismo da série que a torna tão atrativa, apesar dos pesares.

Próximos passos

A quarta temporada da série já está marcada para estrear em 2021, após ser adiada em decorrência da Covid-19. Lançado em junho deste ano, o teaser promocional demonstra a vontade e a esperança de June, personagem principal, de derrubar a estrutura de governo e mudar toda a realidade de Gilead.

               Elisabeth Moss interpreta June, uma mulher subjugada                      Foto: Divulgação Hulu

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