Casa Cultural Las Vulvas: uma discussão sobre produção cultural e empoderamento feminino

Clara Celina

Este espaço alternativo dá lugar para diversas manifestações artísticas e a discussão das questões femininas

     A produtora cultural Cássia Camila é administradora da Casa Cultural Las Vulvas, centro cultural que tenta promover a visibilidade de artistas independentes e colocar as mulheres em foco. É também um dos únicos locais em Pelotas que promove eventos abertos exclusivos para mulheres, permitindo um ambiente de interação seguro, no qual elas podem conversar entre si a respeito de suas vivências e dificuldades.

     Nesta entrevista Cassia Camila fala especificamente do contexto artístico e dos empreendimentos culturais pelotenses, com base nos conhecimentos e experiências de administradora da Casa Cutural Las Vulvas. Também comenta as dificuldades de ser produtora e artista enquanto mulher.

Cassia fala da trajetória do espaço desde os tempos do  Arte Cidade Criativa                                                                               Foto: Quindim Cultural/YouTube

 

 

Arte no Sul – Como é empreender em arte e cultura, dando visibilidade para a cena local, para artistas independentes e que estão em início de carreira?

Cassia Camila – É um trabalho que eu considero bem difícil, sobretudo porque nós não recebemos apoio e em minha opinião é quase como um serviço público porque Pelotas tem muitos artistas, mas poucos lugares que são para a arte e a cultura. Tem muitos barzinhos de lazer que envolvem música e exposição, mas o foco não é no artista. Nós, aqui com a casa começamos como um espaço de encontro entre artistas independentes que conhecemos através da nossa experiência e, por ventura, são esses artistas que menos conseguem visibilidade.

Acho que é um processo natural, porque artistas com mais visibilidade procuram locais que existem há mais tempo, que envolvem mais grana… Isso complica nossa trabalho como produtoras culturais, que é uma profissão nova – na verdade, ainda nem é considerada profissão -, mas que tentamos encarar com responsabilidade, porque entendemos que vários problemas sociais podem ser sanados com arte e cultura, não em termos de recursos, mas de conscientização.

Por exemplo, eu penso que em vez de ir prestigiar cantores e artistas que já têm certa visibilidade, mas que trazem discursos preconceituosos e machistas, é melhor valorizar artistas independentes que estão começando, mas que possuem discursos de resistência. Isso já faria toda diferença. E acho que esse é um dos problemas da nossa sociedade, é uma desigualdade muito grande que se exerce no campo cultural também.

Tem muitos artistas que ganham muito, produtores culturais que ganham muito – tanto de recurso privado, quanto de recurso público – e artistas que ganham muito pouco, que têm acesso mínimo a esses recursos e eu não acho que a falta de acesso se deva à falta de qualidade. Pelo contrário, alguns possuem muito mais qualidade do que os que possuem maior visibilidade, só que não encontram oportunidades. E essa falta de oportunidades se dá por vários motivos, às vezes as pessoas não abrem portas para alguns artistas porque são mulheres, ou porque são da periferia ou se envolvem com determinados segmentos culturais que não são bem aceitos. Então, aqui, a Casa Las Vulvas é um espaço alternativo e de resistência, porque para ter um espaço assim tem que ter muita grana e para ter essa grana nós fazemos várias coisas, inclusive vender comida na rua. Por isso, também, eu acho que é um empreendimento cultural e social. É difícil se manter, sobreviver do que a gente faz.

Arte no Sul – E como é para você enquanto mulher empreendedora, quais as dificuldades que você encontra no meio?

Cassia Camila – Nós colocamos esse nome, Casa Cultural Las Vulvas, também para deixar claro que é uma casa de mulheres. Antes tínhamos outro nome, era Arte Cidade Criativa. Nessa época o coletivo tinha homens e as coisas ocorriam de outras formas, quando os homens começaram a sair do coletivo – por diversos motivos, alguns se formaram, mudaram de cidade, enfim – quando ficaram apenas mulheres e passamos a fazer eventos só para mulheres, tudo mudou completamente. Isso ainda com o nome de Arte Cidade.

Antes de ter só mulheres, as pessoas não sabiam quem geria a casa, viam só que tinha uma representação masculina. Quando as mulheres começaram a formar a identidade do coletivo e, sobretudo, depois, quando ficou só eu e a Ana, um casal de lésbicas, as coisas mudaram. Por mais que nós não tenhamos estabelecido que aqui fosse um lugar de mulheres para mulheres, as pessoas já viam isso e mudou o público da casa. Alguns homens, artistas que trabalhavam junto com a gente, simplesmente pararam de trabalhar. Entende? Ao ponto de não conversar mais, de não tocar no assunto, não vir mais na casa.

Muitas pessoas perguntam se essa casa é só pra mulher. Por mais que não seja, nunca perguntam se um lugar é só pra homens só porque é gerido e com foco em homens. Nós sentimos várias dificuldades, até para concorrer a edital público. Antes, quando não tinha esse foco, nas mulheres, era muito mais fácil, ganhávamos tudo que era edital. Agora, mesmo já tendo uma caminhada, alguns anos de experiência, não ganhamos mais. Aí eu me pergunto qual é a questão, por que antes, sem experiência, conseguíamos e agora não mais, o que acontece? Para mim, é explícito de que é porque somos mulheres, lésbicas, essas coisas.

Arte no Sul – A Casa Cultural Las Vulvas é um dos únicos ambientes de Pelotas que proporciona eventos só para mulheres, como você organiza isso?

Cassia Camila – Nós fazemos alguns eventos só para mulheres, acho que pelo menos metade, tem o Encontro das Bruxas, algumas rodas de conversa e oficinas. Só que mesmo nos eventos abertos, para o público geral, dificilmente vêm homens. Alguns ainda perguntam se o evento é só para mulheres, respondemos que não, que a casa não é só para mulheres e que nós informamos quando o evento é restrito. Então isso também dificulta nosso trabalho, porque às vezes tem meninas heterossexuais e se os namorados não podem vir, elas também não vêm.

Então, assim, os eventos só para mulheres criam um ambiente mais seguro, só que financeiramente nós não vivemos uma situação de mundo em que mulheres têm poder aquisitivo para conseguir manter um espaço sem adesão dos homens.

A maior parte dos eventos nós não cobramos entrada, e quando cobramos é um valor simbólico justamente porque consideramos essas questões. Hoje, 70% da população pobre é composta por mulheres. A maioria das mulheres, até artistas – quando estávamos focadas na questão do Rap, por exemplo, as mulheres do Rap que são da periferia tinham muito mais dificuldade do que os homens, muitas eram casadas, precisavam da autorização do marido para vir, tinham filhos, não podiam vir à noite, etc. – Então existem várias questões que dificultam nosso trabalho e não dificultariam se fossem homens.

Financeiramente, para a casa, o encontro das bruxas é um evento em que conseguimos arrecadar o suficiente para a manutenção do espaço, mas muitos encontros nós pagamos para fazer.

Às vezes nós vemos meninas reclamando de festas misóginas, e também é algo que me incomoda porque falam muito disso, reclamam desses ambientes, mas ao mesmo tempo não aparecem aqui. Se esses mesmos ambientes fazem uma festa legal para cada dez festas machistas e você vai, já tá ajudando na manutenção do espaço deles. Enquanto aqui, deixando de vir em um evento também já se deixa de ajudar na manutenção do espaço.

Então existe um lugar seguro para mulheres, mas não se valoriza. Gostaríamos que as mulheres também valorizassem mais o trabalho que fazemos aqui.

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