Uma viagem ao passado

Reportagem de Matheus Garcia –

Exemplar arquitetônico mantém vivo o esplendor do século XIX –

A Charqueada São João foi construída em 1810 por Antônio José Gonçalves Chaves

     A cidade de Pelotas é conhecida por ser um município com uma bagagem histórica muito rica. Quem passeia pelas ruas pode conferir isso nas fachadas dos casarões que nos remetem até meados do século XIX, quando a Princesa do Sul tomava forma de cidade e ascendia economicamente com a produção do charque que, para quem não sabe, é a carne de gado abatida e salgada ao sol em processo de desidratação e que servia para a produção do famoso arroz carreteiro, prato típico aqui do Rio Grande do Sul. As lembranças da história remetem tanto ao período de riqueza, como também à escravidão que constituía o modo de organização econômica.

     Com colonização portuguesa, Pelotas teve seu período de riqueza através da construção das charqueadas à beira do arroio que leva o mesmo nome da cidade. No total, foram 13 dessas famosas construções rurais e de caráter industrial que foram erguidas para o trabalho com a carne salgada. Hoje, apenas oito se mantém de pé e somente uma delas ainda faz um resgate ao passado do município.

     A Charqueada São João começou a ser construída em 1807 por Antônio José Gonçalves Chaves, famoso barão do charque da época, e foi inaugurada três anos depois, em 1810, sendo, segundo relatos históricos, a segunda erguida nessas terras. Foram muitas as gerações que trabalharam com a fábrica de charque na propriedade. Mas quando a safra se encerrava, já que ela durava apenas de novembro a abril, nos outros meses a charqueada servia como olaria. A mão-de-obra, que era totalmente escrava, parava para dedicar-se à produção de tijolos e telhas. O telhado do lugar foi todo produzido manualmente, provendo daí a expressão muito popular, “feito nas coxas”. As telhas eram moldadas junto às pernas dos escravos, o que explica a irregularidade do material.

ABERTURA AO PÚBLICO

     Foram várias as décadas em que este ciclo se manteve vivo até sua extinção. Atualmente a residência, que já foi casa de outras três gerações, pertence à família Mazza desde 1952. Rafael Dias Mazza comprou a propriedade e presenteou a esposa Nóris com essa belíssima prova de amor. Dona Nóris dedicou grande parte da vida a preservar o patrimônio histórico e afetivo do lugar e, desde o ano 2000, ele passou a ser aberto ao público para visitações guiadas e também pode ser alugado para eventos. Após o falecimento de dona Nóris Mazza, em 2001, a charqueada é administrada pelo neto Marcelo Mazza Terra.

A visita ao local é uma volta ao passado da colonização de Pelotas. Desde que você pisa no pátio da charqueada, já passa a mergulhar na riqueza da época, mas também relembra um período de dor e sofrimento como o da escravidão. O tronco onde os negros eram açoitados, a senzala e as ferramentas de tortura são abertamente vistos no passeio guiado e, segundo Marcelo, nada pode ser escondido e tanto a parte gloriosa quanto os fatos ruins têm que ser contados para quem está visitando o local.

PRESTÍGIO MIDIÁTICO

O nome da Charqueada São João, segundo informações, foi uma homenagem de Gonçalves Chaves para o filho primogênito João Maria. Mas há quem diga que, na verdade, seja por causa da imagem de São João Batista construída no pátio, sendo ele o santo padroeiro da maçonaria, religião que Gonçalves Chaves era seguidor. Cenário para fotos de casamento e formaturas, também já foi locação para duas grandes produções que retrataram um pouco da história do nosso Rio Grande do Sul. Em 2002, foi palco para as gravações da minissérie global A Casa das Sete Mulheres. E dez anos depois, foi a vez de rodarem cenas do filme O Tempo e o Vento, adaptação cinematográfica da obra literária do escritor gaúcho Érico Veríssimo. A Charqueada São João é a única de todas as outras oito que se mantém de pé que ainda preserva os traços originais da construção e que possui o próprio acervo histórico.

Para Marcelo, a propriedade ter servido de locação para essas duas grandes produções foi além do prestígio que o lugar ganhou e também do aumento das visitas, já que muitas pessoas procuram a charqueada para conhecer o cenário das belas cenas que viram na televisão ou no cinema. Claro que foi um orgulho para nós termos sido palco de ‘A Casa das Sete Mulheres’ e de ‘O Tempo e o Vento’, mas o maior legado que essas duas produções deixaram foi o interesse que as pessoas adquiriram pela história de Pelotas e também pela grande influência na implantação do estudo das charqueadas no currículo escolar daqui, que antes não existia. Isso foi o melhor que elas poderiam deixar para nós, pois a criançada agora pode conhecer a história da cidade onde elas moram. É onde nasceram e se criaram e os pequenos têm o privilégio de vir até aqui para verem com os próprios olhos, fazer esse resgate. É bárbaro!”, disse Marcelo.

DETALHES TÍPICOS E LENDAS

O requinte do lugar mostra a riqueza da época do império e da ascensão econômica de Pelotas, durante o período do charque, no século XIX. As características de uma construção típica são mostradas pelos azulejos portugueses, os vitrais que, quanto menores eram, maior a fortuna da família que ali habitava, as louças de porcelana, os cristais, a prataria, os detalhes minuciosos de cada objeto, dos móveis, e o pátio interno, onde as mulheres podiam sair para tomar um ar. Além disso, muitas lendas que foram passadas de geração para geração ainda vivem no imaginário popular, como a da árvore figueira de mais de 500 anos, famosa por ser como uma espécie de fonte dos desejos. Reza a lenda que, se tocar na árvore e fazer um pedido, ele se realizará. E, segundo relatos do próprio Marcelo, muitos visitantes que foram atrás da crendice popular, retornaram um tempo depois à charqueada para contar que o pedido feito havia sido realizado.

PASSEIO DE BARCO

Depois do passeio guiado pelo interior da propriedade, o visitante ainda pode ter a possibilidade de fazer um passeio de barco pelas águas calmas do arroio Pelotas. Desde 2001 ele é ofertado ao público e a embarcação tem capacidade para 30 pessoas, todas sentadas em lugares individuais e acolchoados e devidamente equipadas com salva-vidas. O barco parte da São João, passando pelas outras oito charqueadas que ainda sobrevivem às margens do rio e o Marcelo possui qualificação profissional segundo as normas estabelecidas pela Marinha do Brasil.

Durante a viagem, além de conhecer um pouco mais sobre a história do ciclo do charque no município, os tripulantes podem apreciar a belíssima paisagem que lhes é ofertada pela natureza. Segundo Marcelo, a charqueada que herdou da família é importante por ser a única em Pelotas que mantém viva a história do município. Isso faz com que o trabalho que ele e sua equipe desenvolvem incentive outros empreendedores a tornar a cidade realmente um ponto turístico no Estado por causa do forte patrimônio histórico que ela possui. “Pelotas sempre teve potencial para ser uma cidade turística, mas nunca conseguiu ser. E esse trabalho que a gente vem desenvolvendo aqui há mais de 15 anos é um incentivo para muitos que querem empreender e pôr nosso município no mapa turístico do Brasil como além da terra do doce, mas também com o passado histórico muito forte que ele ainda tem e que está estampado nos casarões do centro histórico, aqui na São João, nas outras charqueadas e em vários lugares da cidade”, disse Mazza.

HORÁRIOS

A Charqueada São João fica aberta para visitação de segunda a sábado, das 9h às 18h. Nos domingos e feriados, o local abre das 14h às 18h e o valor do ingresso para a visita guiada é de R$ 25,00 para adultos, mas este preço sofrerá alteração a partir deste mês. Além disso, o barco pode ser alugado pelos visitantes por R$350,00 e o lugar oferece também almoço com um cardápio recheado de comidas tradicionais gaúchas, como feijoada tropeira e arroz carreteiro. É uma ótima oportunidade de resgatar uma importante parte da história de uma Pelotas antiga. Contatos podem ser feitos pelo telefone (53) 3015-1810 e pelo site. Vale a pena!

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COMENTÁRIOS

Estou hoje visitando a Charqueada São João. Quantas lembranças estou revivendo. Na minha infância muitas tardes e finais de semana passei nesse local. Vim participar do Primeiro encontro Antirracista do SINDJUSRS. 27/11/2021.

María Albertina Nolasco Gonçalves

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