Três meses fora de casa: a jornada de Dona Eva após a enchente
Conheça a história de um casal de trabalhadores que, depois de deixar sua casa na mesma noite que a água subiu, reconstrói o lar com carinho e dedicação
Por Enzzo Lopes

Conheça a história de um casal de trabalhadores que, depois de deixar sua casa na mesma noite que a água subiu, reconstrói o lar com carinho e dedicação
Ilustração: Ana Alice Winter
Hospitalidade talvez seja a melhor palavra para descrever Eva. Foi essa a impressão deixada no breve encontro de uma tarde fria de segunda-feira, em junho, quando a vimos chegar em casa. Após horas percorrendo a cidade sem grandes expectativas, nossa equipe quase encerrava o dia sem uma história. Mas ali estava ela.
Pensar em uma série de reportagens sobre pessoas atingidas pelas enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul e que contaram com o apoio da Universidade Federal de Pelotas na recuperação de alguns objetivos pode levar à suposição de que os relatos se repetem. Que são variações do mesmo tema. No entanto, essa ideia se desfaz rapidamente quando se observa de perto a particularidade de cada vivência.
Cada família afetada enfrentou o desastre à sua maneira, reagindo de acordo com suas experiências, contextos e formas próprias de lidar com as perdas. Eva Regina Borges da Silveira foi um dos muitos exemplos dessa diversidade de situações vividas após as enchentes.
Diarista, Dona Eva mora com seu companheiro, seu Cláudio Antônio Sampaio dos Santos, no bairro Laranjal há mais de dois anos. Pelotense, foi mais uma vítima do maior desastre climático da história do estado e, surpresa, concordou em compartilhar conosco sua história, lembrando desde o príncipio dos acontecimentos – dos alertas até a recuperação de tudo o que foi levado pelas águas.
Os alertas
O marido de Dona Eva, Seu Cláudio, mora na casa onde vivem no Laranjal há mais tempo do que ela. Já passou por algumas enchentes e não se desesperou com a água que havia devastado as regiões ao norte do estado e que desciam para a Lagoa dos Patos antes de seguir seu rumo para o mar. A mesma tranquilidade não foi sentida por Eva, que acompanhava constantemente as notícias e alertas compartilhados pela então prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas.
“A gente vinha já acompanhando o noticiário, né? ‘Olha, é certo que a água vai chegar’, mas a prefeita dizia, ‘ainda tem um tempinho’ e isso e aquilo, né? Então, a gente foi esperando. Meu esposo, que já mora aqui há muitos anos disse ‘não, na outra vez a gente teve uma lâmina de água só dentro de casa’. Então, a gente imagina que não vai ser mais que isso. Eu ainda comentei com ele: ‘Igual o pessoal tá dizendo que a coisa vai ser muito feia’. Eu já tava prevendo que seria algo bem diferente’, relembra ela.
Foi em uma terça-feira, enquanto trabalhava na casa de sua cunhada que a mesma a alertou. Era o momento de arrumar as suas coisas e sair de casa. A água estava muito perto. No mesmo instante, ela ligou para o trabalho de seu esposo o avisando que iria para a casa preparar as coisas. Ele a acompanhou e durante a noite se prepararam para o pior.
Os dois separaram vestimentas, colocaram coisas pequenas em caixas de plásticos e levaram as roupas que conseguiram. Os eletrodomésticos ficaram, cada um em um ponto estratégico. Microondas e forno elétrico sobre a mesa da cozinha, a mesma em torno da qual tivemos nossa conversa. A geladeira acima de tijolos. Após tudo pronto, seguiram para a casa de sua irmã.
A água entrou em casa naquela madrugada.
O período fora de casa
Solidariedade é uma palavra que você provavelmente ouviu bastante durante a época das enchentes. Dessa solidariedade, dona Eva também precisou. Foram três meses fora de casa, convivendo com a incerteza de como seriam as coisas a partir dali e o que seria preciso para reconstruir novamente o seu lar. Quem ofereceu sua mão para ajudar foi sua irmã, que abrigou ela, seu marido e seus dois cachorros, por esse tempo.
Dona Eva e Seu Cláudio conseguiram manter suas rotinas da forma mais normal possível. Ela, diarista, e ele, que atua no setor da construção civil, continuaram trabalhando normalmente.
Quando as coisas já não andavam boas, mais um contratempo. A parte de trás da casa tinha uma porta de vidro. Está foi totalmente destruída em meio às inundações. ‘Um dia quebraram toda a porta dos fundos. Acho que pra entrar, pra ver se achavam alguma coisa para roubar […]. Não levaram nada, graças a Deus. Eles estragaram a porta, a chuva continuava. Aí ficou a casa mais vulnerável ainda, porque a gente tinha coisas aqui e a porta tava quebrada. Até a gente conseguir vir e arrumar a porta… uma preocupação!”, explica Eva.
Com mais essa ansiedade, a vigilância a sua casa continuou. O casal explica que a casa aparecia com frequência nos noticiários e que visitavam bastante seu lar. As autoridades também ficaram acampadas um pouco mais acima na região e de lá traziam os moradores para que acompanhassem o estado de suas casas.
Mas os três meses em que estiveram longe de sua casa, abrigados pela irmã da diarista, não se resumiram apenas aos dias em que a água esteve dentro do seu lar. Uma das partes mais trabalhosas de tudo é a limpeza que precisa ser feita no retorno. Depois que a água baixou, boa parte de suas semanas foram resumidas em limpeza, que só podia ocorrer aos finais de semana, atrasando ainda mais o processo.
A volta para casa
Qual deve ser o sentimento de voltar para casa? Pessoas que nunca passaram por isso talvez nunca irão entender totalmente. Essa é uma parte da experimentação humana que não há como definir. Por isso, mais uma vez, é necessário o nosso olhar solidário para todas essas histórias.
Para Dona Eva e Seu Cláudio, voltar para casa foi, sobretudo, cansativo. Com muitas manutenções e limpezas a serem feitas, ambos só conseguiam tempo aos finais de semana. Quem já convive com a umidade típica de Pelotas sabe as complicações de viver nessas condições climáticas. Imagine quando sua casa fica “de molho” por dias. Foram mais de 12 semanas fora de casa.
“O cheiro era horrível. O cheiro era tudo das fossas de banheiro. O meu irmão quando olhou para o banheiro e para a cozinha disse ‘Nossa, será que isso aqui vai ter salvação?’. E eu falei: ‘Vai, e a gente vai tirar tudo que não presta agora’. Tava tudo caído, tudo desmontado, umas coisas por cima das outras, porque foi caindo umas coisas e outras foram caindo por cima”, conta ela.
Um processo de limpeza demorado. Um dia inteiro apenas para tirar o entulho. Outro para lavar as paredes. Os rejuntes. Pinturas novas. Muro destruído. Tudo isso fez parte da realidade que dona Eva e seu marido encontraram ao voltar para casa. E, além do dinheiro que só essas coisas já demandam, é preciso também recuperar sua mobília.
“A gente está fazendo gastos que a gente não poderia fazer, né? No momento, a gente paga uma coisa aqui, paga aquela ali, compra outra coisa… a gente tá fazendo assim, né? Porque veio o dinheiro da reconstrução, mas a gente teve que arrumar o muro que caiu. É muito mais gasto de dinheiro do que nós podemos bancar”, conta ela. Mesmo o auxílio recebido do governo federal, de R$5.100,00, não foi o suficiente para reconstruir tudo. “Ajudou bastante, mas não pode se dizer que o dinheiro que veio a gente fez tudo porque é muito além”.
Sobre isso, a dona Eva e Seu Claudio relatam que receberam apenas o auxílio de Brasília, mas aquele destinado pelo governo estadual nunca foi visto. Ainda na esfera política, o casal destaca sua insatisfação com a falta de melhorias nos processos de manutenção do sistema de drenagem de Pelotas e contenção de cheias da atual administração municipal.
Reconstruindo Lares
A universidade está mais perto da comunidade do que as pessoas acreditam. Seja na área da saúde, da formação de profissionais, no monitoramento das cheias e mais algumas várias outras áreas da vida cotidiana. A importância da UFPEL no auxílio da população afetada pelas inundações que assolaram a cidade de Pelotas em maio de 2024, se estendeu para além do tempo em que as casas estiveram debaixo d’água.
Seu Cláudio, marido de Dona Eva, não se recorda quem o contou do projeto “Reconstruindo Lares”, realizado por diversos cursos do centro de engenharias da UFPEL. Lembra somente que havia uma “turma lá que estava consertando”. Dona Eva decidiu arriscar e entrou em contato com o projeto. Eles aceitaram ajudar e arrumaram sua geladeira e máquina de lavar.
“Na época que eu perguntei se dava pra arrumar eu disse pro rapaz ‘Eu não tenho dinheiro ainda pra poder te levar aí’ e ele disse ‘Não, eu vou dar um jeito então, o pessoal vai buscar’. Eles vieram buscar e depois eu disse [para o marido], ‘Vamos agora dar um jeito da gente conseguir quando estiver pronto buscar, né?’”, relembra ela.
E agora?
A vida segue. Ficar parado é uma opção apenas de quem não precisa trabalhar e correr atrás de suas coisas. Talvez a parte mais dramática de uma tragédia seja a vida seguindo após sua vida tomar um rumo nunca imaginado. Você não senta e absorve o que aconteceu. Não utiliza isso como uma lição de resiliência. Só é uma tristeza.
Dona Eva e seu marido não voltaram para a sua casa logo após as águas baixarem. Eles foram trabalhar. Um dia, depois outro e mais outro. Na próxima manhã, era sábado. Eles levantaram e foram para a sua casa tirar todo o entulho e lodo que as águas trouxeram. No seguinte, a mesma coisa. No posterior, trabalho. Assim seguiram por semanas.
Quando perguntados se têm medo de acontecer de novo outra tragédia, seu Cláudio respondeu que acredita que com certeza acontecerá e não vai demorar. Dona Eva complementa que, no primeiro sinal, irão tirar tudo de casa. “Com certeza. O plano é esse agora. A gente não vai esperar nada. A gente não vai esperar nada”. Talvez aí esteja uma lição, afinal.
Dona Eva e Seu Cláudio seguem reconstruindo suas vidas. É a única opção. Não querem abandonar sua casa. Adoram morar na praia. Seguem sua vida esperando o melhor e preparados para o pior.

