Política Nacional de Resíduos Sólidos na prática

O que mudou 10 anos após a criação da lei que determina parâmetros de gestão de resíduos sólidos

Por: Giorgia Ossanes

A lei Nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) no território brasileiro. A lei estabelece diretrizes de gerenciamento de resíduos sólidos e alguns de seus principais objetivos são: não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.

Resíduos sólidos e rejeitos são nomenclaturas para as duas categorias em que se divide o lixo. Os resíduos são as sobras de processos produtivos que podem ser reaproveitadas em outras finalidades. Já os rejeitos são tudo o que não pode ser reutilizado, tendo como única alternativa o descarte.

De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2019 foram geradas 79 milhões de toneladas de resíduos no Brasil, cerca de 12 milhões a mais do que foi produzido em 2010. Neste mesmo período, em nível regional, o Rio Grande do Sul teve um aumento de mais de um milhão de toneladas geradas ao ano.

A quantidade de resíduos gerados, em média, por cada habitante, também aumentou na maioria das regiões do país. Analisando os dados podemos notar, por exemplo, que, embora a região norte produza menos resíduos que a região sul, sua geração per capita é maior. Ou seja, de forma geral, os habitantes do norte do país produzem cerca de 40 kg de lixo a mais por ano, em relação ao sul do Brasil.

Segundo a Abrelpe, cada brasileiro descarta, por ano, 170 kg de matéria orgânica, isto é, sobras e perdas de alimentos, resíduos verdes e madeiras. Essa quantidade equivale a 45,3% do total de resíduos sólidos urbanos produzidos nacionalmente.

Para a doutora Elisa Bald Siqueira, docente no Instituto Federal Sul-rio-grandense no curso superior de Tecnologia em Gestão Ambiental e no curso Técnico em Meio Ambiente, os brasileiros ainda não perceberam a relação entre a geração de resíduos e o dinheiro.

“Se a gente pensar que quase 50% do total de resíduos são matérias orgânicas, isso significa que estamos jogando comida fora. E também dinheiro. Existem cooperativas de compostagem que utilizam resíduos orgânicos para fazer composto orgânico e vender depois. Acho que o brasileiro ainda não pensa nisso, no poder de lucro que o resíduo tem. Além disso, tudo o que estamos colocando fora, nós pagamos de novo, porque pagamos para dispor todos esses resíduos, por meio de taxas de lixo, por exemplo. Quanto mais se gera, mais se paga. Acho que deveria se falar mais na possibilidade de ganhar dinheiro, ou deixar de perder, com o lixo.”.

No ponto de vista governamental, a Abrelpe destaca a importância de entender a composição dos resíduos gerados pela população: “O conhecimento da composição dos resíduos sólidos permite o adequado planejamento do setor por meio de estratégias, políticas públicas e processos específicos que assegurem a destinação ambientalmente adequada preconizada pela PNRS, levando-se em consideração as melhores alternativas disponíveis e aplicáveis, de acordo com os tipos e quantidades de resíduos existentes.”.

A quantidade de resíduos coletados cresceu em todas as regiões do Brasil desde a instituição da PNRS. A cobertura da coleta no país passou de 88% em 2010 para 92% em 2019. Considerando o ano de 2019, isso significa que, das 79 milhões de toneladas de resíduos produzidos, 72,7 milhões de toneladas foram coletadas. Melhor dizendo, cerca de 6 milhões de toneladas de resíduos sólidos não foram devidamente coletadas no Brasil em 2019. Os índices de cobertura de coleta no Rio Grande do Sul são maiores que os nacionais, alcançando 95,5% em 2019. Segundo o Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas (SANEP), no município a área urbana é totalmente contemplada pela coleta domiciliar, já na área rural o alcance cai para 75%. Mas, apesar do aumento nos índices, ainda há muito lixo acabando em lugares inadequados.

“Hoje mais municípios brasileiros têm a coleta, em comparação ao início da Política, e esse é um ponto positivo. Mas acredito que a eficiência ainda precisa melhorar. Às vezes o município tem coleta, mas só passa no bairro uma vez por semana. Esse nível de eficiência não garante a coleta ideal para todos. O lixo que fica na rua acaba em lixões, valetas e outros destinos inadequados. Então, ao mesmo tempo em que nós temos a coleta, ela não é efetiva”, explica Elisa.

Quando falamos de coleta seletiva, termo usado para o recolhimento dos resíduos que podem ser reaproveitados, os números são menores. Entre 2010 e 2019, pouco mais de 900 cidades aderiram alguma iniciativa de coleta seletiva, totalizando 4.070 no país. No Rio Grande do Sul já são 90,9% dos municípios com pelo menos uma iniciativa nesse sentido.

De acordo com o SANEP, Pelotas é completamente assistida pelos vários projetos de coleta seletiva. 75% da população é efetivamente contemplada com o método porta a porta feito por caminhões. A coleta seletiva também é realizada nos ecopontos, que recebem os resíduos da população, assim como as cooperativas de reciclagem. Além disso, o SANEP disponibiliza coletas agendadas nas residências dos pelotenses que não são atendidos pela coleta porta a porta.

Segundo Edson Plá Monterosso, coordenador do Departamento de Resíduos Sólidos do SANEP, a expectativa é que, ainda em 2021, seja possível realizar a coleta seletiva porta a porta em 100% da cidade de Pelotas.

“Eu diria que nós temos condições de, no mínimo, duplicar as quantidades de materiais recicláveis que atualmente estamos coletando. Temos capacidade tanto de coleta quanto de processamento para isso. Cerca de 30% da população pelotense participa desses projetos ambientais, o que é um índice bem baixo. Claro que seria utópico imaginar que uma cidade teria 100% de participação de sua população, mas nós ainda podemos aumentar muito esses índices.”, diz o coordenador.

A destinação dos resíduos sólidos urbanos

Uma das metas da Política Nacional de Resíduos Sólidos era a eliminação e recuperação de lixões no país. Porém, este objetivo tem sido constantemente adiado. “Em 2020 foi sancionado o Novo Marco Legal do Saneamento, ele estabelece novos prazos em relação aos lixões, com metodologias diferentes. Em agosto de 2021, as capitais brasileiras precisam reduzir o número de lixões, por exemplo. São metas a longo prazo. O Novo Marco Legal tem algumas alternativas, ele procura ajustar o que não deu certo na Política. Eu acredito que seja melhor, mas ainda acho que essas metas não vão ser cumpridas.”, afirma Elisa.

Segundo a Abrelpe, a quantidade de resíduos que tiveram destinações inadequadas, como lixões e aterros controlados, passou de 25 milhões de toneladas para cerca de 29 milhões em 2019. Porém, mesmo com o aumento, é preciso destacar que, em relação ao total produzido, menos resíduos têm sido destinados aos lixões. “A medida que aumenta o percentual de resíduos que vai para aterros sanitários, significa que se diminui o percentual que vai para lixões. Obviamente ainda não é o ideal, mas tem diminuído com a Política. Podemos considerar isso como um pequeno avanço.”, explica Elisa.

De 2010 para 2019 a destinação para aterros sanitários subiu de 56,8% para 59,5%, enquanto para lixões diminuiu, passando de 19,3% para 17,5%.

Contudo, de acordo com o panorama da Abrelpe, considerando a manutenção do cenário atual, seriam necessários 55 anos para que os aterros controlados e lixões fossem efetivamente fechados. Hoje, apesar do avanço registrado, cerca de 6,3 milhões de toneladas de lixo ao ano acabam abandonadas no meio ambiente.

O descarte inadequado de rejeitos e resíduos sólidos urbanos causa contaminação de solos, cursos de água e da atmosfera, o que prejudica o ambiente e a saúde humana. Atualmente o descarte incorreto de lixo impacta diretamente a saúde de 77,65 milhões de brasileiros e tem um custo ambiental e para tratamento de saúde de cerca de um bilhão de dólares por ano.

Responsabilidade sobre seu próprio lixo

A Política Nacional de Resíduos Sólidos estabeleceu a logística reversa como um dos instrumentos de implementação do princípio da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Na prática, os setores devem encaminhar ações para a implementação de sistemas que priorizem o retorno de embalagens para uma nova fase de aproveitamento.

A responsabilidade compartilhada também está contemplada na Política. Celulares são um tipo de resíduo que é de responsabilidade do cidadão que o adquiriu. No entanto, quando o aparelho estraga a responsabilidade passa a ser compartilhada com a loja onde o produto foi adquirido e com a fábrica que o produziu. Segundo Elisa, a loja tem o dever de receber o celular novamente, assim como a fábrica, que pode reaproveitar peças e então dar o destino adequado ao resíduo. Contudo, esse é mais um ponto da PNRS que não é efetivamente cumprido na prática.

“O exemplo do celular é algo fácil de levar na loja, mas e se uma geladeira estraga? O consumidor que vai levar até a loja? Isso não está escrito. Tu leva o produto na loja ou ela busca na tua casa? A fábrica disponibiliza o transporte para a loja ou a loja entrega na fábrica? Esses detalhes não estão discriminados na Política. Alguns setores funcionam muito bem, outros ainda têm falhas nessa parte.”, explica Elisa.

Conectado ao termo responsabilidade compartilhada está a logística reversa, quando o consumidor devolve a embalagem do produto após utilizá-lo. O panorama da Abrelpe evidencia o setor agropecuário como um dos sistemas relevantes que estão avançando na implementação da logística reversa. Em 2010, 31.266 toneladas de embalagens de agrotóxicos foram coletadas no país, já em 2019 esse número subiu para 45.563 toneladas, sendo que 42.891 toneladas (94%) foram enviadas para a reciclagem.

O que se identifica, porém, é que os sistemas de logística reversa que foram estabelecidos pela PNRS não avançam com tanto êxito quando comparados àqueles cuja obrigatoriedade foi determinada antes da Política, como é o caso dos agrotóxicos. O retorno de pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes e vários outros resíduos para descarte adequado ainda não é tão comum quanto deveria, após 10 anos da Política Nacional em vigor.

“A estagnação dos índices de reciclagem, apesar das várias ações, campanhas e iniciativas para alavancar o setor e viabilizar o aproveitamento dos materiais descartados, demonstra que a fragilidade das redes existentes, a inexistência de um mercado estruturado para absorver os resíduos e as dificuldades logísticas e tributárias devem ser objeto de atenção prioritária, juntamente com a estruturação dos sistemas de logística reversa definidos por lei, já que no período de uma década, apenas aqueles cuja obrigatoriedade antecede a PNRS apresentam resultados satisfatórios”, conclui a Abrelpe.

Os resíduos de Pelotas

Segundo o coordenador do Departamento de Resíduos Sólidos do SANEP, Edson Plá Monterosso, atualmente são coletadas, em média, 250 toneladas de resíduos sólidos domésticos por mês em Pelotas.

O município encerrou as atividades de seu aterro sanitário em 2012, mas de acordo com Edson, o local passa por um processo de monitoramento desde então, seguindo as diretrizes da PNRS, que define o acompanhamento por 12 anos após o fechamento de aterros e lixões. Agora os resíduos sólidos de Pelotas são encaminhados à Estação de Transbordo do SANEP e então são transferidos ao Aterro Sanitário Metade Sul, localizado em Candiota.

“Considerando a Política Nacional, a Estação de Transbordo de Pelotas deveria receber somente os rejeitos, mas lá se vê de tudo, desde resíduos passíveis de reciclagem até eletrodomésticos. O que menos têm são rejeitos. E tudo isso vai para o aterro sanitário, o que faz com que ele dure menos tempo do que deveria.”, esclarece Elisa.

Porém, segundo Edson Plá, a determinação da PNRS de que resíduos não poderiam mais ser encaminhados aos aterros é uma “grande mentira técnica”. Ele explica que hoje grande parte da população não faz a separação de lixo, mas mesmo que o fizesse, existem inúmeros condicionantes que impedem a reciclagem.

“Como não existe uma política pública governamental de estímulo à reciclagem, os centros de reciclagem da maioria dos produtos ficam concentrados em poucas cidades, geralmente nas capitais ou no centro do país, o que inviabiliza o frete para transporte desses resíduos recicláveis dos municípios até os centros de triagem.”, explica, “O que se nota quando se fala de gestão compartilhada é que o Governo Federal não fez a sua parte. É uma situação ainda muito complexa. A coleta seletiva, a segregação dos resíduos por parte da população e a utilização das cooperativas são engrenagens dentro do processo de reciclagem, mas nada disso resolve o problema se não tivermos para quem encaminhar esses materiais coletados. Então, no momento em que não há uma política nacional neste sentido e o que existe é falho, se torna praticamente inviável o reaproveitamento de muitos materiais recicláveis.”.

Além dos resíduos e rejeitos de Pelotas, o Aterro Sanitário Metade Sul recebe o lixo urbano de toda a metade sul do estado e fica localizado em uma área arruinada pela mineração.

Elisa explica que para a implantação de aterros sanitários, um dos principais requisitos é que se utilize uma área já degradada, onde não existe a possibilidade de criar animais ou fazer uma lavoura, por exemplo. “Mas eu acho que já deveriam existir pesquisas para outras alternativas de destinação, porque uma hora a área vai acabar. Para projetar um aterro também precisa ser levado em conta o tempo de vida do lugar, não adianta a gente utilizar uma área onde um aterro duraria 5 anos, ele deve durar por no mínimo 20 anos. Mas hoje 20 anos passam voando e depois desse tempo é preciso fechar a área e ficar monitorando gases, por exemplo, então é uma área comprometida para o resto da vida. Portanto, enterrar o lixo não é o ideal, mas aqui no Brasil ainda é o que temos de ambientalmente mais correto, considerando nossa tecnologia, cultura, realidade e investimentos.”, conclui.

Imagem de 2020 do Aterro Sanitário de Pelotas,

fechado em 2012 – Foto: Rodrigo Soares.

“Ainda há grandes dificuldades para se colocar em prática os avanços planejados quanto à elaboração da PNRS. Princípios fundamentais como reduzir a geração, implementar os sistemas de logística reversa, aumentar a recuperação dos materiais e assegurar a disposição final adequada apenas dos rejeitos ainda estão longe de serem alcançados.”, declara Abrelpe.

Para Elisa, se o nível básico funcionar, ou seja, a coleta de resíduos sólidos urbanos com coleta seletiva, os outros pontos da Política acompanhariam. “Hoje não podemos admitir uma cidade sem coleta seletiva, por menor que ela seja, esse é um investimento que os governos deveriam fazer. Mais municípios brasileiros hoje têm iniciativas de reciclagem, mas a gente não vê isso na prática. Talvez falte sensibilização da população, educação ambiental. Mas o ponto mais importante é o básico, a coleta de resíduos.”, afirma.

De acordo com o panorama de 2020 da Abrelpe, com base nos dados disponíveis hoje é possível projetar a geração de resíduos sólidos urbanos no Brasil para as próximas décadas e os resultados não são nada positivos. Seguindo o cenário atual, o país alcançará a marca de 100 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos gerados em 2033. “Essa marca traz um chamado urgente por políticas públicas mais incisivas de estímulo à não geração e à reutilização de materiais, etapas iniciais e prioritárias na hierarquia da gestão preconizada pela PNRS.”..

Após 10 anos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, pouco foi efetivamente posto em prática e o nosso futuro não traz boas notícias, faz-se necessária a revisão das políticas públicas em vigor e da criação de novas iniciativas que visem mudanças reais.

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