“Cidade Invisível” e a representatividade no audiovisual

Por Jaime Lucas Mattos / Em Pauta

Pôster da segunda temporada da série/ Imagem: Divulgação/Netflix Brasil

 

Cidade Invisível” segue a história de Eric Alves (Marco Pigossi), policial ambiental que, tempo após a morte de sua esposa, encontra um boto cor-de-rosa morto em uma praia do Rio de Janeiro e passa a desconfiar que as duas mortes têm uma conexão. A partir dessa relação, Eric descobre um mundo oculto de entidades folclóricas, que sempre estiveram vivendo ao nosso redor.

Na segunda temporada, que estreou em março na Netflix, os encontros e desencontros de Eric e sua filha, Luna (Manu Dieguez), são o fio condutor da narrativa. Com o apoio de Inês/Cuca (Alessandra Negrini), pai e filha buscam se reencontrar, apesar dos obstáculos impostos por outra entidades folclóricas e pelo garimpo ilegal de terras indígenas.

A questão do garimpo ilegal, vale mencionar, foi trabalhada com cuidado e foi bem inserida na trama. Nesta temporada, temos um núcleo de personagens que quer explorar os recursos naturais de um ambiente indígena cheio de ouro. As entidades do folclore brasileiro têm a missão de proteger esse lugar, chamado Marangatu, que está, por meio de um feitiço, escondido no meio da floresta amazônica.

O garimpo ilegal ganha destaque na trama dos antagonistas da narrativa. Pessoas poderosas usam Lazo/Zaori (Mestre Sebá) como um detector de ouro, tendo em conta que o Zaori é uma figura que tem a capacidade de enxergar a riqueza das terras. Além disso, estão atrás de Luna, já que ela possui a capacidade de encontrar e adentrar o Marangatu.

A Mula Sem Cabeça é um dos novos personagens folclóricos que aparecem na série / Imagem: Divulgação/Netflix

Além de Cuca e Zaori, somos apresentados a outras figuras folclóricas, como a Matinta Perê (Letícia Spiller), a Mula Sem Cabeça (Simone Spoladore) e o Menino-Lobo (Tomás de França). Apesar de as entidades do folclore brasileiro terem mais destaque nessa temporada, eles ainda são usados com um pouco de superficialidade.

Os personagens poderiam ser melhor desenvolvidos, com mais tempo de tela, para uma identificação maior do público. A série pressupõe que as pessoas já conhecem as figuras folclóricas, no entanto isso exclui da jogada não só os brasileiros que não as conhecem como também exclui o público internacional que está conhecendo a série e não tem nem o conhecimento básico sobre o nosso folclore.

Muito desse subdesenvolvimento dos personagens se deve ao fato de que a nova temporada tem apenas 5 episódios. A narrativa também parece apressada, passando a impressão de que os roteiristas tinham pouco tempo para desenvolver muita coisa. Se tivesse mais episódios, o desenvolvimento dos personagens e da narrativa poderia ter sido melhor. É compreensível que “Cidade Invisível” seja uma série cara de se produzir, muito por conta de seus efeitos especiais – que são muito bem feitos, por sinal –, porém a solução não é fazer poucos episódios. A parte artística da série foi afetada.

Alessandra Negrini vive uma Cuca diferente do habitual. Ao invés de ser um jacaré, ela se transforma em borboleta / Imagem: Reprodução/Netflix

 

Apesar de alguns problemas, a série consegue entregar um bom material com o que tem disponível. Uma das maiores virtudes é a discussão sobre os dons sobrenaturais dos personagens. Algumas entidades veem seus poderes como uma maldição, no entanto a narrativa traz a discussão de que eles devem assumir a força da natureza que está dentro de si.

Se na primeira temporada a história estava centrada no Rio de Janeiro, na segunda a equipe toma a sensata decisão de deslocar a história para a Amazônia, centralizando o núcleo de personagens em Belém (PA). Essa é uma decisão acertada principalmente por conta da representatividade que vem junto com ela. Se antes apenas atores não-indígenas integravam o elenco – o que foi duramente criticado pelo público –, agora a produção conta com pessoas indígenas tanto na frente quanto atrás das câmeras.

Zahy Guajajara (interpretando Débora), Ermelinda Yepario (como Pajé Jaciara), Igor Pedroso (como Norato) e Kay Sara (como Telma Dyorá) são alguns dos atores que ganharam destaque na série. Também está incluída na equipe a diretora Graciela Guarani.

Zahy Guajajara é uma atriz indígena que ganha destaque vivendo a vilã Débora / Imagem: Reprodução/Netflix

Há muitos anos as minorias sociais buscam ter sua voz ouvida no que diz respeito à representatividade no audiovisual brasileiro. Após anos de reivindicação, a representatividade negra, por exemplo, se faz mais presente na TV brasileira ultimamente. Na TV Globo, as novelas que estão no ar trazem personagens negros em papel de destaque além de elencos com um número considerável – mas ainda não ideal – de pessoas negras.

No entanto, as reivindicações de minorias sociais seguem ecoando pela internet e outros espaços sociais, em críticas à indústria. A representatividade de pessoas negras, da comunidade LGBTQIA+, dos povos originários, das pessoas com deficiência, entre outros, ainda não chega perto do que deveria ser.

A representatividade dos povos originários é muito escassa na TV brasileira. Aparecem pouco na TV, como em “Aruanas” (2019), mas só aparecem quando a questão indígena é um dos tópicos do personagem. São poucos os indígenas sendo representados na dramaturgia como sujeitos atuantes na sociedade, que também frequentam espaços comuns e têm profissões como qualquer outro ser humano. Sua participação em séries e novelas é sempre reduzida à luta de sua causa.

Temos casos complicados, como, por exemplo, o da novela “Novo Mundo” (2017), que possuía um núcleo indígena em que os atores contratados para interpretar esses personagens eram pessoas não-indígenas.

Tendo em vista esse cenário, “Cidade Invisível” é um leve respiro. A série consegue trazer representatividade para a narrativa, conseguindo trabalhar com personagens indígenas que estão envoltos de sua causa, mas que podem ter personalidades e profissões próprias. A personagem de Zahy Guajajara é uma das vilãs, subvertendo o papel que se espera do estereótipo, enquanto a personagem de Kay Sara é uma advogada que luta contra o garimpo ilegal. A representatividade ainda não é a ideal, mas dá alguma perspectiva de avanço.

Personagens de Manu Dieguez e Alessandra Negrini em busca do Marangatu / Imagem: Reprodução/Netflix

Cidade Invisível” traz uma temporada sobre sensibilidade e reconexão consigo mesmo e com a natureza, inserindo na tela a narrativa folclórica com a representatividade indígena que é naturalmente necessária. Com isso, observamos que a equipe soube escutar as críticas e colocar na narrativa aqueles que deveriam estar desde o princípio.

A série está disponível na Netflix, com duas temporadas.

Comentários

comments

Você pode gostar...