Porquinho-da-Índia [Manuel Bandeira]

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .
 
— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
 
(Libertinagem, 1930)

O retrato [Adélia Prado]

Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d’água sob as lentes,
caminhando de terno e gravata,
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar.
Eu quero a dor do homem na festa de casamento,
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,
os olhos cheios d’água sob as lentes.
O coração disparado (1978)

[um homem com sua dor] [Paulo Leminski]

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
com se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa, um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios, édens, analgésicos
não me toquem nesse dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra

La vie en close (1991)

Fotografia de Mallarmé [Ferreira Gullar]

é uma foto
premeditada
como um crime

basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
— um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá — e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera da eternidade

sabe-se
após o clique
a cena se desfez na
rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel raso
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha

(Muitas vozes, 1989-1999)

Recado aos amigos distantes [Cecília Meireles]

Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.

Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

1951

Segundo motivo da rosa [Cecília Meireles]

A Mário de Andrade

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas…
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas.

E a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas…

Mar absoluto e outros poemas (1945)

Lua Adversa [Cecília Meireles]

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…

Vaga música (1942)

Motivo [Cecília Meireles]

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Viagem (1939)

Encomenda [Cecília Meireles]

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Vaga música (1942)