Retrato [Cecília Meireles]

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos tão sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou retida
a minha face?

Viagem (1939)

O beijo [Carlos Drummond de Andrade]

Mandamento: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.
 
Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda — tibum — no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.
 
Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.
 
Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.
 
Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.
Menino antigo (Boitempo II)

Memória prévia [Carlos Drummond de Andrade]

O menino pensativo
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha 
este instante imaturo.
 
Seu olhar parado é pleno 
de coisas que passam 
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo da exumação.
 
O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável 
e por isso se chama
absoluto.
 
Viver é saudade
prévia.
 
Menino antigo (Boitempo II)

Iniciação [Orides Fontela]

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

— és infinitamente mais estranho.

(Rosácea)

Destruição [Carlos Drummond de Andrade]

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

[Lição de coisas]

Science-fiction [Carlos Drummond de Andrade]

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.

[Lição de coisas]

O bolo [Carlos Drummond de Andrade]

Na mesa interminável comíamos o bolo
interminável
e de súbito o bolo nos comeu.
Vimo-nos mastigados, deglutidos
pela boca de esponja.

No interior da massa não sabemos
o que nos acontece mais lá fora
o bolo interminável
na interminável mesa a que preside
sente falta de nós gula saudosa.

[Lição de coisas]

Aniversário [Carlos Drummond de Andrade]

Um verso, para te salvar
de esquecimento sobre a terra?
Se é em mim que estás esquecida,
o verso lembraria apenas
esta força de esquecimento,
enquanto a vida, sem memória,
vaga atmosfera, se condensa
na pequena caixa em que moras
como os mortos sabem morar.

[Lição de coisas]