Filme brasileiro conquistou as bilheterias nacionais e relembra das marcas de um passado não tão distante quanto gostaríamos
Por Maria Eduarda Lopes
Era 20 de janeiro de 1971, um feriado ensolarado no Rio de Janeiro, mas também o auge da Ditadura Militar no Brasil. Na casa de sua família no Leblon, o ex-deputado federal cassado pelo AI-1, Rubens Beyrodt Paiva, foi levado para prestar depoimentos no Quartel da 3ª Zona Aérea, após seis agentes armados com metralhadoras invadirem a sua residência. Nas próximas 24 horas, Rubens seria torturado até a morte nas localidades do DOI-Codi, enquanto seus filhos e esposa permaneciam detidos, incomunicáveis e angustiados, aguardando pela sua eterna volta. Rubens nunca mais seria visto por eles ou por mais ninguém.
Sua esposa, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, mais conhecida como Eunice Paiva, passaria o resto da vida lutando por justiça, e se tornaria um símbolo da luta pelos direitos das vítimas da ditadura, formando-se uma ilustre advogada da causa indígena e dos direitos humanos. Essa é a história real em que o filme “Ainda Estou Aqui” se propõe a contar, baseada na obra literária homônima de mesmo título, escrita pelo caçula da família, Marcelo Rubens Paiva.
Lançado em 7 de novembro, data que também marca o aniversário de Eunice, o novo longa-metragem do cineasta Walter Salles tem levado milhares de brasileiros para as salas de cinema. Bateu o recorde de maior bilheteria nacional pós-pandemia durante suas quatro semanas de exibição, com mais de dois milhões de espectadores. Contando com um elenco consagrado e uma direção cinematográfica de renome, “Ainda Estou Aqui” nos retrata de maneira sensível uma trama infelizmente muito próxima da nossa realidade.
Walter Salles não é novato no que se propõe a fazer. Um dos cineastas mais bem sucedidos do mundo, com títulos como “Terra Estrangeira” e “Central do Brasil”, ele se reencontra com Fernanda Torres e Fernanda Montenegro para emplacar mais uma obra digna de premiações, sendo cotada pela crítica como representante brasileira no Oscar 2025.
Em “Ainda Estou Aqui”, Fernanda Torres dá vida de forma esplêndida à personagem de Eunice Paiva, uma mulher da classe média-alta carioca, dona de casa, mãe de cinco filhos e, até então, completamente alheia aos assuntos políticos do marido. Interpretado pelo brilhante Selton Mello, Rubens Paiva, além de ser abertamente contra o regime ditatorial, também repassava cartas de pessoas perseguidas e exiladas aos seus familiares e amigos.
Até o fatídico dia em que Eunice vê as garras afiadas e impiedosas da ditadura perfurar dores perpétuas em si e em seus filhos. Após os agentes levarem seu marido, não demora muito para ela também ser levada, juntamente com sua filha Eliana (interpretada por Luiza Kosovski), de 15 anos na época, para serem interrogadas nas dependências do DOI-Codi. Eliana é solta um dia depois. Eunice permanece presa por 12 dias.
Com o marido desaparecido, sob uma farsa arquitetada pelos militares de que ele havia conseguido escapar e fugir do país, Eunice se encontra na posição de provedora e assume o protagonismo, começando a tomar atitudes. Há o choque de que nem sua classe socioeconômica a protege do regime, o choque por ter que passar a criar sozinha seus filhos. Enfrenta dificuldades econômicas, ao mesmo tempo em que é obrigada a encarar o peso imensurável de um luto estranho à consciência humana, o luto incerto do desaparecimento.
O filme começa exigindo um pouco de paciência do espectador, pois nos insere na rotina da família antes do acontecido, nas brincadeiras das crianças, nos dias passados na praia, nas festas em que recebiam amigos em sua casa, nos diálogos banais do dia a dia. Coexistem o cotidiano inocente e o prenúncio da dor, uma imagem e semelhança da fragilidade humana. Todos esses contrastes constroem uma atmosfera densa e angustiante até o momento em que essa utopia é destruída.
Angústia seria a palavra ideal para descrever o sentimento despertado pela obra, que graças à composição de diversos aspectos técnicos, consegue transmitir uma sensação de aflição e agonia em todas as cenas. Talvez tenha sido exatamente isso que Eunice Paiva tenha sentido durante toda sua vida. Mesmo 25 anos depois, após receber o atestado de óbito do marido, quando ela finalmente pode reconhecer e viver o seu luto, o buraco deixado nunca seria preenchido. “O não reconhecimento da morte de Rubens foi a forma de tortura mais violenta a que eles poderiam submeter nossa família”, disse Eunice.
Somos colocados como participantes, muito além de espectadores. A direção de arte, desde os figurinos até os cenários, e principalmente a direção de fotografia sabem como nos integrar com aquela realidade. São usados planos abertos, por vezes filmados com uma Super 8, dando um tom intimista para os momentos em família, com tons alegres e vibrantes, que vão perdendo o brilho após a prisão de Rubens, transicionando para o uso de planos mais fechados, com tons mais escuros.
É como se pudéssemos sentir tudo o que Eunice sentia, e isso se deve à atuação fascinante de Fernanda Torres, que é capaz de dar uma dimensão emocional à sua personagem através da pura essência de suas dores, cravando uma introspecção profunda na narrativa. Não apenas ela, como todo o elenco, obtém sucesso em expressar as diferentes camadas psicológicas de seus personagens. Selton Mello dá um toque muito pessoal a Rubens Paiva, representando um pai brincalhão, divertido e afetuoso. Essas cenas, contudo, são um presságio do luto que viria a seguir.
Outro aspecto da obra é que ela decide não seguir um caminho melodramático. Opta-se por um retrato histórico utilizando uma linguagem muito poderosa, a do silêncio. Em “Ainda Estou Aqui”, os silêncios carregam significados. A atriz Fernanda Montenegro interpreta Eunice em seus anos finais de vida, acometida pela doença do Alzheimer. Sem dizer uma única palavra, ela vem deixando salas inteiras dos cinemas completamente silenciosas.
Em contrapartida, a trilha sonora é muito significativa. A música é usada como um instrumento de protesto, e serve para comunicar as questões emocionais dos personagens, chegando a se integrar junto ao roteiro. A trilha faz um recorte da época retratada, os anos 70 no Brasil, e conta com nomes ilustres da MPB e Tropicália, como Caetano Veloso, Juca Chaves, Mutantes, Gal Costa e Roberto Carlos. No lugar de canção emblemática do longa, está “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”, composta por Erasmo Carlos, um clássico da sua parceria com Roberto:
Eu cheguei de muito longe
E a viagem foi tão longa
E na minha caminhada
Obstáculos na estrada, mas enfim aqui estou
Mas estou envergonhado
Com as coisas que eu vi
Mas não vou ficar calado
No conforto acomodado como tantos por aí
É preciso dar um jeito, meu amigo
Esses detalhes sutis, como o diálogo entre a trilha sonora e o roteiro, enriquecem a narrativa. Outros detalhes se destacam, como as notícias que eram transmitidas pelo rádio ou pela televisão sempre serem cortadas ou interrompidas, representando a falta de informações sobre o paradeiro de Rubens, como uma resposta que nunca chegava. Ou as manchas de sangue no chão da sala de interrogatório em que Eunice é levada no DOI-Codi, os gritos desesperados dos torturados que podiam ser escutados da cela, ou as aparições de prisioneiros nos planos de fundo quando Eunice estava encapuzada.
E, apesar da trama não ter escolha senão esbarrar numa temática tão grotesca e bruta, que é a tortura estendida em seus diversos aspectos físicos e psicológicos, o filme não precisa chocar com cenas gráficas e explícitas para garantir que o público receba a mensagem.
Ficar subentendido já é suficiente, e simboliza a falácia de que “a tortura na ditadura nunca existiu”. Ela sempre esteve presente, mesmo debaixo dos panos, por trás das farsas arquitetadas pelos militares ou por trás da mídia que a encobria. Ela só estava longe da realidade da maioria da população. A tortura era uma realidade muito mais próxima para aqueles que, por motivos descabidos e absurdos, eram considerados uma “ameaça” para o País. Crianças e adolescentes, estudantes ou não, mulheres, gestantes ou não, mães e pais de família como Rubens Paiva. A ditadura e seus algozes não distinguiam vítimas, e não havia nenhuma garantia de que não seríamos os próximos a ser alguém que “um dia simplesmente sumiu, e nunca mais foi visto”.
“Ainda Estou Aqui” vai além do retrato documental de Eunice Paiva. O longa nos mostra as intimidades de sua dor, e consequentemente, as cicatrizes abertas de uma nação inteira. Ela nos obriga a confrontar um dos períodos mais sombrios do nosso país, relembrar tempos que não estão tão distantes de hoje, como se o Brasil tivesse dificuldades em preservar e revisitar sua memória nacional. A arte não existe para ser confortável. Ela deve nos fazer refletir e levantar questionamentos.
No filme, a todo momento paira no ar uma sensação de estranhamento, uma impressão de que os personagens estão sendo observados, um receio de que um “bicho-papão” salte da tela. Esse bicho-papão no mundo real podem ser ideias, discursos e posicionamentos, que são legitimados por nós ao darmos espaço para que esse monstro cresça se alimentando da nossa alienação.
O cenário político atual do Brasil é um caso à parte, mas nunca estamos tão longe do golpe quanto gostaríamos. Ao nos depararmos com grandes esquemas articulados por militares de alta patente e políticos de extrema direita, orquestrando assassinatos de presidentes e tomadas de poder através de documentos detalhados com planos de ação, “Ainda Estou Aqui” se faz muito necessário. Ainda estamos aqui, combatendo esse mesmo mal.
E ao contrário de alguns críticos afirmarem que o sucesso da obra é um ufanismo exagerado ou apenas badalação da mídia, ou que o viés ideológico e as críticas políticas são o seu maior alicerce, é positivo que a mídia esteja exaltando a produção. É positivo que estejam falando sobre a ditadura, sobre o golpe que ocorreu no nosso país e sobre as suas vítimas. Como um longa-metragem que retrata a história de pessoas tão afetadas por um regime ditatorial não teria a crítica política como maior alicerce? Existe alguma crítica diferente da negativa à Ditadura Militar Brasileira? Desconsiderando aqueles que de alguma forma foram beneficiados por ela, ou aqueles que estavam dentro das salas do DOI-Codi com o dedo no gatilho.
Mesmo que o filme saia de cartaz muito em breve, as reflexões levantadas por ele devem ser perpetuadas. A frase “um povo que não relembra sua história está fadado a repeti-la” pode ser clichê, mas continua se provando verdadeira.
A construção da memória de Eunice Paiva deve ir além da viúva da ditadura. As citações à sua pessoa estão sempre atreladas ao seu marido. Eunice se colocou além da tragédia pessoal e lutou pela verdade, pela dignidade humana e pelos direitos civis. Advogou contra a violência e expropriação indevida de terras indígenas. Ela arriscou a sua vida, mesmo correndo risco sob o regime, pois não enxergava uma alternativa a não ser questionar e contestar as leis vigentes que ainda amparam torturadores e seus crimes.
Em entrevista para o Cine Ninja, Fernanda Torres destaca: “Na dramaturgia, há diferença entre um melodrama e uma tragédia. O que eles vivem é uma tragédia. Na tragédia, não dá pra ficar num canto, chateado, triste, choroso. A tragédia obriga você ou a se matar, ou a seguir. E ela não tinha nem como ter autopiedade, do melodrama, e nem como sumir, porque ela tinha cinco filhos. Precisávamos ser fiéis a ela”.
Mesmo acometida pelo Alzheimer, Eunice não permitia ser diminuída por conta da doença, segundo relata seu filho: “Jamais sentiria pena de si mesma. Nem queria que sentíssemos pena dela. Jamais pediu ajuda. Recentemente, uma nova fala cheia de significados entrou no seu repertório, especialmente quando um turbilhão de emoções a ataca, como rever uma filha que mora na Europa ou segurar no colo o meu filho, o que mostra uma felicidade e um alerta, caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui” (de Ainda Estou Aqui, livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme).
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