Celebração está sendo retomada desde 1970 e é uma poderosa manifestação da cultura, ancestralidade e força espiritual
Por Vanessa Oliveira
O Kiki é um ritual sagrado de culto aos mortos realizado pelo povo indígena kaingang, que habita principalmente as regiões sul e sudeste do Brasil. No período pré-colonial, esse ritual envolvia cânticos, danças, bebidas, uso de instrumentos musicais e era conduzido por líderes espirituais conhecidos como “kuiâs”. Tinha como objetivo fornecer a quem falece uma boa transição ao numbê (o mundo dos mortos). Entretanto, com a colonização do Brasil, o ritual foi interrompido devido à catequização forçada dos indígenas. Na década de 1970, os kaingangs da região Sul e do estado de Santa Catarina, principalmente, retomaram o ritual como forma de resistência cultural e identitária. Por muitos anos a cerimônia deixou de ser realizada.
No ritual, são feitas pinturas pelos corpos e rostos dos que irão participar. O Kiki demonstra a associação das metades kamé e kairu. Cada metade possui motivos faciais específicos: os kamé pintam-se com “riscos” e os kairu com “pontos”. Uma metade realiza a cerimônia para o falecido da metade oposta. Kamé sempre vai na frente do kairu. Ele é considerado o “mais forte” para se relacionar com os espíritos.
Segundo a pesquisadora Juracilda Veiga, no seu artigo “Cosmologia Kaingang e suas práticas rituais”, uma vez desencadeado o processo da realização do ritual ele não pode ser interrompido até o seu final. As etapas são: coletar os alimentos necessários, derrubar o pinheiro, colocar a bebida para fermentar, chamar os convidados e realizar a festa. A preparação da bebida usada no ritual leva mais de 10 dias e é preparada dentro do tronco de um pinheiro. Os rostos são pintados, definindo-se duas metades: kamé e kairu. Os rezadores kuiâs e auxiliares vão à mata escolher a árvore. Lá eles cantam para enfraquecer o espírito do pinheiro que servirá à cerimônia. Isso corresponde à ideia geral de que o espírito sustenta o corpo ou a vida.
Vinícius Casemiro da Silva Trindade, jovem indígena da Aldeia Condá, nunca participou do ritual e só conheceu a história contada pelos mais velhos da comunidade. Ele relata que, nessa cerimônia, havia danças e cantos pela perda de seus anciãos da aldeia, também havia bebidas como uma forma de homenagear os mortos. “É proibido levar crianças para essa festa, pois as almas das crianças são muito fracas para participar. Quando uma criança adoece, os pais da criança devem chamar repentinamente pelo nome indígena da criança até ela voltar ao seu próprio corpo”, descreve.
Jorge Kagnãg Garcia foi um dos últimos kuiâ (líder espiritual) kaingang da Terra Indígena de Nonoai onde realizava o ritual. O ancião faleceu aos 102 anos de idade, no dia 9 de janeiro deste ano, deixando importantes ensinamentos culturais para todo o povo kaingang.
A neta de Jorge, Marizete Jakaj Garcia, recorda: “O ritual acontecia todos os anos. O processo de preparação da bebida durava 10 dias e era feita somente pelos kuiâs. Era fermentada e, no último dia, era servida para os membros da comunidade, uma quantia específica para cada um, conforme a sua marca “clânica”. O ritual é cheio de regras, a bebida é feita de flores, mel, entre outras ervas medicinais que só o ancião sabia e não podia revelar”.
Claudemir Moreira Vaz, terapeuta ocupacional da Aldeia Indígena Serrinha localizada no município de Ronda Alta (RS), relata que: “A bebida continha um teor alcoólico, além disso, os mais antigos contam que quando a aldeia ou várias aldeias apresentavam grande número de enfermidades – epidemias – e mortes frequentes, fazia o kiki, consumia e chamava os mortos/espíritos para fazer uma limpeza na aldeia. Outros dizem que se tomava para conversar com os que já se foram, são vários contos sobre o kiki,” afirma.
A busca por reconectar os mais velhos das comunidades kaingangs com o ritual completo do kiki, aliada ao desejo dos jovens, como o de Vinícius e Marizete, de vivenciarem essa tradição ancestral, ressalta a importância da preservação cultural e da transmissão intergeracional de conhecimento.
Este anseio não apenas fortalece a identidade, mas também enriquece a compreensão e valorização das práticas culturais indígenas, promovendo um diálogo intercultural e significativo em nossa sociedade.
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