Considerado um dos filmes mais aguardados do ano, “Barbie” chegou aos cinemas para mostrar que a visão em cor-de-rosa vai muito além do ideal de faz de conta que ele traz consigo
Por Sarah Oliveira
ALERTA: Esta resenha pode conter spoilers do filme.
Regado a muitos tons de rosa e uma estética retrô, “Barbie: O Filme”, dirigido por Greta Gerwig, estreou no dia 20 de julho. Porém, desde muito antes da sua estreia, o longa já era ansiosamente esperado por milhões de pessoas ao redor do mundo. Com uma premissa mantida em segredo até mesmo em seus trailers – o que gerou uma curiosidade ainda maior nos seus futuros espectadores -, o filme conta a história de Barbie (Margot Robbie), uma boneca para quem todos os dias são perfeitos. Os melhores momentos de sua vida são ao lado de seu amigo Ken (Ryan Gosling), das suas outras amigas Barbies e de seus outros amigos Kens. Todos eles vivem na “Barbielândia”, um mundo onde as mulheres (Barbies) lideram tudo e os homens (Kens) apenas… vivem nele. Entretanto, tudo começa a desandar quando a nossa Barbie protagonista começa a ter pensamentos sobre a morte, o seu dia perfeito se torna a cada segundo menos perfeito e – o mais assustador de tudo – os seus calcanhares agora estão no chão e não mais suspensos no ar para encaixarem perfeitamente em seus saltos altos.
Deste momento em diante, a boneca parte em uma jornada para descobrir o que está por trás de tudo o que está acontecendo com ela nos últimos dias. Mas, para desvendar esse mistério, ela precisa ir para o mundo real. E é o que ela faz – com Ken ao seu lado, mesmo ele não devendo estar ali.
Apesar de parecer uma história simples e até mesmo inocente, Greta Gerwig nos leva em uma narrativa onde a complexidade é a chave-mestra para que a sua mensagem seja entendida por completo. Sendo um dos maiores traços de seus filmes, o teor crítico-social e feminino de Gerwig também se faz presente em “Barbie”, porém de uma forma em que o espectador precisa realmente prestar atenção no que está sendo mostrado, pois não é somente o que está em cena que é a mensagem a ser passada e compreendida, mas também as informações, entonações e apontamentos contidos por traz dela e também em suas entrelinhas. Ao contrário do que estamos acostumados a ver no cinema, quando o diretor(a) pega o espectador pela mão e aponta com o dedo cada crítica que o seu trabalho está se propondo a trazer, da maneira mais fácil e óbvia possível, em “Barbie”, temos o oposto disso. A diretora coloca na tela a sua crítica de forma satírica, em que a verdadeira mensagem não é aquilo que está sendo dito, mas sim o seu aposto. Há momentos que Gerwig utiliza o bom e velho método já estabelecido, porém, o seu foco de compreensão está para além do estabelecido – ele está junto a quem está assistindo.
Definitivamente, “Barbie” é um longa que aposta na capacidade intelectual e de compreensão de seu espectador. Ele conta que a pessoa que o está assistindo também utilize dos próprios pensamentos, ideias e achismos para que a sua ideia principal seja atingida. Apesar de ser algo inovador, ousado e feito justamente para estreitar os laços com a pessoa do outro lado da tela, também é algo extremamente perigoso – basta ver as reações e comentários divergentes de homens e mulheres que assistiram ao filme. Diversas mulheres e homens compreenderam que a ‘Barbielândia’ é uma analogia ao nosso mundo “real” – esse em que nós humanos vivemos – onde os papéis sociais estão invertidos e é justamente com essa inversão que podemos perceber o quanto a nossa sociedade é desproporcional e desigual. Enquanto isso, outros homens (em sua maioria) e mulheres concluíram que o filme é apenas mais uma comprovação da narrativa – errônea – de que o feminismo é um ideal “anti-homem”, ou seja, é uma apologia a ideia de que homens devem ser calados, silenciados e diminuídos para que as mulheres sejam as novas dominadoras e controladoras do mundo. Essa realidade parece familiar, não? Pelo menos para nós, mulheres, é.
A mensagem de ‘Barbie’ é clara: uma comunidade, uma sociedade ou um mundo apenas será melhor, mais próspero e mais evoluído, em todos os seus aspectos, quando houver igualdade e equidade entre todos que vivem nele. Senão, tudo o que temos e todos os lugares que vivemos, estarão sempre à beira do colapso e do regresso.
Outra questão promovida pelo filme e que usa a Barbie e o Ken como exemplo é a diferença entre ser uma mulher e ser um homem. A masculinidade ou ser um Ken, no nosso mundo é exaltada, celebrada e incentivada, já na “Barbielândia”, ela é apenas ordinária, comum, sem relevância. Enquanto isso, a feminilidade ou ser uma Barbie nesse mesmo mundo é algo altamente celebrado, importante e com significado. Contudo, no mundo real, ela é apenas uma mulher e, como todas as outras meninas, jovens, adultas e idosas, ela é mais um alvo da misoginia, do machismo e do sexismo que regem e estão impregnados na nossa organização social.
Para muitas pessoas, esse e outros pontos abordados podem ser questões a serem pensadas, problematizadas e processadas dentro de si, pois talvez ainda não sejam diretamente e efetivamente afetadas por elas ou porque, até o momento, não chegaram ao ponto da vida onde elas passam a fazer parte do seu cotidiano. Agora, para aqueles – no caso, aquelas – que já vivenciaram e lidam com esses fatos e fatores, não há nada de impactante ver esse tipo de tratamento hostil que a Barbie sofre ao chegar no nosso mundo, pelo menos não a um nível de que tal situação seja um choque de realidade arrasador e questionador, como é para uma boa parte do público. Pelo contrário, elas apenas reconhecem a sua realidade através da boneca e isso leva a espectadora a dois caminhos diferentes: o de achar que o filme realmente opera com base na realidade, devido à simplicidade da sua abordagem do tema, ou o de achar que esse é mais um filme que propaga uma ideia de feminismo básico, com pouca profundidade ou recortes – tanto em comparação com as outras obras de Gerwig e de outras diretoras, quanto ao mundo real que Barbie está descobrindo e que também não é verdadeiramente preciso com a nossa realidade, mas essa é uma outra discussão.
Para além da história e de todas as suas nuances, “Barbie” é um colírio para os olhos tecnicamente falando. Estando o cinema em sua era de produções regadas a efeitos especiais e detalhes retocados por designers em seus megacomputadores e softwares avançados de computação gráfica, o filme de Robbie e Gerwig voltou às origens da indústria cinematográfica e utilizou de grandes construções e efeitos práticos para criar e tornar o mundo rosa da boneca o mais verossímil possível. Um exemplo disso é a construção da própria “Barbielândia” nos estúdios da Warner Bros. Discovery, onde todas as casas, carros, prédios, monumentos e fundos foram pintados à mão e montados para passar a sensação de que os atores estavam mesmo em um mundo real de plástico.
Outro fator admirável na produção são os figurinos, criados pela ganhadora do Oscar Jacqueline Durran. Com peças criados do zero e sob medida para os atores do filme, os looks da Barbie principal também contam com peças vindas direto dos arquivos da grife francesa Chanel, que, além de emprestar diversas roupas e acessórios de suas icônicas coleções dos anos 90, também fabricou vários modelos para que Robbie usasse em cena como a boneca. Feitos a partir da parceria entre Duran e Virginie Viard, a diretora criativa da marca, os figurinos reforçam maravilhosamente bem a identidade visual vintage escolhida por Gerwig para o filme.
As atuações de seus protagonistas também são outro ponto altamente positivo de “Barbie”. Margot Robbie definitivamente consegue parecer uma versão em tamanho real da boneca com emoções e reações humanas, sem perder a sua aura de brinquedo, especialmente quando ela saiu de seu mundo perfeito e vai de encontro com a realidade disfuncional e grosseira do novo lugar a ser explorado. Margot nos entrega em uma interpretação sensível e tocante que nos faz torcer por ela a cada novo passo que ela dá em direção à sua jornada de descobrimento. É através dela também que vemos como a vida feminina é uma rota em que há momentos de pura prosperidade e felicidade, que vem seguidos de acontecimentos negativos e angustiantes, mas que sempre prevalecem no final. Afinal, sem saber as alegrias do que é ser mulher, não teríamos escolhido lutar por um lugar melhor para nós, nossas semelhantes e nossos companheiros do sexo oposto.
Já Ryan Gosling traz uma nova perspectiva de quem é o Ken por meio de uma performance divertida e precisa ao demonstrar todas as fases que o boneco passa durante o filme. Partindo de alguém completamente devotado à Barbie, passa pelo momento em que descobre o que é ser homem em um mundo feito para pessoas com a sua aparência. Seu grande clímax é ao assumir uma persona de masculinidade tóxica e recreativa. Até chegar ao seu final, aceitando ser apenas o Ken e descobrindo quem é ele sem a Barbie. Gosling definitivamente entrega a sua atuação mais versátil em relação a tudo que fez anteriormente – mesmo sendo altamente irritante em certos momentos, mas culpamos o patriarcado, ou ‘Kendom’, por isso.
No fim da história, “Barbie” é uma produção surpreendente. Seu conceito, construção e narrativa não são nada do que já tenha sido teorizado desde o dia em que o seu lançamento foi anunciado, desde que os seus trailers foram divulgados e – muito menos – desde o momento em que o filme começa a rolar na sala do cinema.
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