O livro “A Casa dos Espíritos” traz cotidiano familiar marcado pela opressão política
Por Isabella Cardoso Barcellos
Quando se fala em literatura latino-americana é quase impossível não citar o realismo fantástico enquanto subgênero. Se clássicos como “Pedro Páramo” (1955), “Cem Anos de Solidão” (1967) ou “Jogo da Amarelinha” (1963) oferecem mapas já bem orientados para esse novo jeito de guiar narrativas, Isabel Allende acrescenta a subjetividade feminina e o antifascismo como “trunfo” ao apresentar “A Casa dos Espíritos” (1982). Filha de pais chilenos e nascida no Peru em 1942, dedicou sua carreira primeiramente ao Jornalismo e depois à escrita de suas 26 obras já publicadas.
A obra prima de Allende retrata a trajetória da família Trueba em um país latino-americano indefinido ao longo das primeiras décadas do século XX. Clara, uma criança excêntrica e dotada de certa clarividência, perde sua irmã mais velha Rosa e por consequência se casa com o noivo dela, Esteban Trueba: um herdeiro abastado que tem grandes quantidades de terra ainda não exploradas. O casamento de Clara e Esteban guia a história em todos os seus detalhes. É a partir da diferença de caráter entre os dois que surgem conflitos e questionamentos, tanto deles quanto de seus descendentes.
Temas como desigualdade social, machismo estrutural, concentração fundiária e a ascensão de um governo ditatorial são trabalhados ao longo das páginas sem deixar de lado o desenvolvimento de cada personagem apresentado. A narração onisciente em terceira pessoa (em que acompanhamos a história “de fora”, mas com acesso ao que todos os personagens pensam) pode se tornar um pouco cansativa para aqueles que não estão acostumados com parágrafos longos e muitos devaneios existenciais. O realismo fantástico em si acaba se concentrando muito mais nas personagens femininas (Clara, Blanca e Alba, por ordem de nascimento), evidenciando o poder matriarcal nesta família.
Conflitos do dia a dia
Acompanhar as três gerações desta família é comparável a acompanhar a vida de amigos ou familiares queridos. A riqueza de detalhes sobre as incoerências e as qualidades de cada personagem apresentado oferecem uma percepção de realidade para cada um. Quase como se fosse possível encontrá-los na rua ou entrar em contato com descendentes deles através das redes sociais. É preciso reconhecer quando alguém consegue conceber personagens tão complexos e ainda trabalhar uma narrativa coerente em torno de assuntos pertinentes.
Em entrevistas ao longo dos anos e em seu site oficial, Isabel afirma ter se inspirado em sua própria configuração familiar para escrever esta obra. Em entrevista à Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2010, revelou: “Eu não seria escritora se o golpe militar no Chile nunca tivesse acontecido”, reconheceu a autora, que considera o mundo atual muito diferente do de então, já que “não existe mais uma divisão tão grande entre esquerdas e direitas”. Isabel Allende é sobrinha neta do ex-presidente chileno Salvador Allende, cuja morte foi o ponto de partida para os 17 anos de ditadura no país.
Sob a perspectiva de um Brasil em período eleitoral, ataques a lideranças políticas e velhos conflitos em curso, a leitura de “A Casa dos Espíritos” ainda se faz muito relevante após 40 anos de seu lançamento. E ainda que se enquadre aos (já citados) moldes do que é considerado realismo fantástico, o que realmente impressiona seu leitor atento são as semelhanças assustadoras com o que foi e ainda é vivido em países como o nosso além do continente americano.
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