Julya Bartz Boemeke Schmechel
Filme “Queda livre” surpreende telespectador ao retratar tragédia e ganância nos dois acidentes da Boeing em 2018 e 2019
O documentário “Queda livre: a tragédia do caso Boeing” lançado em fevereiro deste ano, na Netflix, revoltou muitos telespectadores. O título reúne depoimentos de jornalistas, especialistas aeronáuticos, políticos, pilotos e familiares das vítimas envolvidas nos acidentes que ocorreram em 2018 e 2019 com um mesmo modelo de avião: o Boeing 737 Max. Com pouco mais de uma hora e meia de duração, o documentário acompanha a luta das famílias em busca de esclarecimento e a devida responsabilização da Boeing pelos trágicos acidentes.
Conhecido como o meio de transporte mais seguro do mundo, o avião atravessa mares e continentes, levando pessoas a diversos lugares diariamente. Segundo a matéria publicada pela revista Superinteressante em 2018, existem mais de 33 mil aviões comerciais no mundo, pertencentes a 1.016 empresas aéreas. E a Boeing sempre foi a empresa de maior prestígio no setor aeroespacial. Fundada em 1916, o primeiro voo realizado pela empresa foi em 1919, com o Boeing B-1. Há um velho ditado na aviação que diz: “Se não for Boeing, eu não vou”.
O repórter Andy Pasztor, repórter há mais de 20 anos no Wall Street Journal, reforça em sua participação no documentário que a Boeing possui uma posição marcante na indústria.
Tudo começou a mudar em 1996, no entanto, quando ocorreu a fusão entre Boeing e McDonnell Douglas (fabricante de aviões norte-americana), como uma tentativa de se manterem competitivos no mercado. A partir desta fusão, a reputação da Boeing começou a desmoronar. Ex-funcionários explicam que o diretor executivo da McDonnell Douglas acabou ocupando o mesmo cargo na Boeing e tudo começou a girar em torno de dinheiro e rentabilidade.
Os líderes da McDonnell aceleraram o processo de transformar a Boeing em uma empresa centrada nos lucros. Assim, todos os aviões precisavam ser fabricados a custos mais baixos.
Quando a concorrente Airbus começou a deslanchar com a qualidade de seus modelos, a Boeing encontrou-se em um cenário extremamente competitivo e pressionou ainda mais a produção de aviões. Com isso, o foco absoluto em segurança, que era tradicional da Boeing, foi comprometido.
O modelo 737 Max surgiu com a intenção de superar a Airbus. O modelo não era novo: somente foi feita uma adaptação em um modelo já existente, para economizar tempo e dinheiro, já que um novo projeto de avião leva anos para ficar pronto. O desespero para ultrapassar (ou pelo menos acompanhar) a concorrente, resultou no “nascimento” do 737 Max.
JACARTA, INDONÉSIA – 2018
Em 29 de outubro de 2018, um Boeing 737 MAX da companhia Lion Air, caiu 13 minutos após sua decolagem em Jacarta. O modelo era novo, a empresa havia o recebido em agosto, apenas dois meses antes da queda. O avião contava com 189 pessoas a bordo e a culpa pela queda caiu sob o piloto, Bhavye Suneja.
Segundo John Cox, especialista em aviação, “O gravador de dados de voo mostra que logo após a decolagem, houve uma pane no indicador de ângulo de ataque da esquerda. É um sensor localizado nos dois lados do avião, que mede o ângulo do nariz durante o voo”. Na ocasião, ninguém pensou que o problema fosse no avião, principalmente por ser um modelo Boeing.
Teria ocorrido um problema com o estol, que significa perda de sustentação. Acontece quando o avião não consegue mais se sustentar no ar e excede o ângulo de ataque crítico O ex-piloto, Sully Sullenberger — conhecido mundialmente por efetuar um pouso forçado bem sucedido em outro voo no rio Hudson —, explica sobre a pane no avião:
“Quando os sensores defeituosos enviaram dados errados para os sistemas do avião, o stick shaker ao lado do comandante vibrou bem alto sua coluna de controle avisando sobre um estol iminente. Mas foi um aviso falso. O avião não estolava, estava voando.”
Na época, a Boeing lançou um comunicado comum, afirmando que não sabia exatamente o que havia acontecido e desejando condolências às famílias. A falta de sensibilidade com os familiares, especialmente por parte do então atual diretor executivo, CEO da empresa, Dennis Muilenburg, mostra muito sobre a postura da Boeing.
DUAS SEMANAS APÓS A QUEDA
O MCAS significa Maneuvering Characteristics Augmentation System (em português, Sistema de Aumento de Características de Manobra ou Sistema de Estabilização Automática). Trata-se de um software conectado aos sensores de ângulo de ataque.
Por causa das características do novo Boeing Max, quando certos ângulos de ataque eram atingidos a certas velocidades, o avião tendia a estolar. Então o MCAS automaticamente empurrava o nariz do avião para baixo. Ele deveria funcionar em segundo plano, abaixando o nariz do avião suavemente cada vez que detectasse que o ângulo de ataque era alto demais. No caso da companhia Lion Air, um sensor de ângulo de ataque estava quebrado, ativando o MCAS indevidamente.
Em 11 de novembro de 2018, a Boeing publicou um comunicado explicando que, aparentemente, o MCAS havia sido ativado erroneamente. Na ocasião, todos questionaram sobre o que se tratava o MCAS. Somente com o esclarecimento do significado da sigla é que a verdade começou a surgir.
A Boeing disse que a tripulação não respondeu de forma esperada ao não desligar o sistema. O problema é que a Boeing nunca disse aos pilotos que o MCAS estava na aeronave.
O repórter Andy Pasztor, ao entrevistar um executivo sênior da Boeing, ouviu: “Nós nunca informamos os pilotos sobre o MCAS. Nunca explicamos o sistema a eles, porque não queríamos sobrecarregá-los com informações. Tentamos não sobrecarregá-los com informações desnecessárias”.
A declaração chocou o mundo e, ainda assim, a Boeing optou por não parar os aviões de mesmo modelo, afirmando que o avião era seguro e confiável. Afinal, a empresa tinha prestígio para dizer “confiem em nós”.
10 DE MARÇO DE 2019
Apenas cinco meses após a queda do avião da empresa Lion Air, no dia 10 de março de 2019, houve o acidente com o avião da Ethiopian Airlines, que contava com 157 pessoas a bordo. O avião saiu de Addis Ababa e caiu logo após a decolagem.
Além da investigação que estava sendo feita pelo Congresso, as famílias começaram a pressionar para que a Boeing fosse devidamente responsabilizada. Após o segundo acidente, a Boeing reconheceu que o MCAS falhou, mas estava tentando culpar a tripulação etíope, que não teria feito o que devia.
Logo após o início das audiências, o jornalista Andy Pasztor recebeu mais informações sobre o que aconteceu na cabine da Ethiopian. A FAA (Federal Aviation Administration – Agência Federal de Aviação) informou que a tripulação identificou que o MCAS havia sido acionado e fez o que a Boeing instruiu em um treinamento posterior ao acidente na Indonésia. E mesmo tomando as devidas providências, o avião caiu.
Após negar por muito tempo em colaborar com o Congresso, a Boeing finalmente entregou os documentos requisitados. Através deles, ficou comprovado que a empresa sabia da necessidade de uma reação rápida ao acionamento automático do MCAS. Nos documentos, ficou explícito que os pilotos deveriam identificar o problema e reagir em até 10 segundos, para evitar uma fatalidade. Porém, para evitar gastos com treinamentos extras aos pilotos para explicar sobre o funcionamento do MCAS, a Boeing optou por omitir informações até mesmo sobre a existência do dispositivo.
Após esta descoberta, o Boeing 737 Max ficou sem voar por 20 meses. Neste período, o sistema MCAS foi revisado e em novembro de 2020, a FAA liberou o avião para voar novamente.
Em janeiro de 2021, o Departamento de Justiça dos EUA acusou a Boeing de conspiração criminosa para enganar a Agência Federal de Aviação. A Boeing concordou em pagar US$ 2,5 bilhões em multas e indenizações. O acordo permitiu que a empresa não fosse processada criminalmente.
O acordo não proporcionou a justiça que os familiares das vítimas buscavam, mas a comprovação da irresponsabilidade da Boeing entrou para a história e abalou a reputação da “queridinha” do setor aeroespacial.
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