A era de Aquarius resiste

Texto de Calvin Cousin e Gabriela Schander –

Cinema – Crítica –

Aquarius, dirigido por Kléber Mendonça Filho e com Sônia Braga estrelando, estreou no Brasil dia 1º de setembro

Aquarius, dirigido por Kléber Mendonça Filho e com Sônia Braga estrelando, pode ser visto em várias salas

Depois de causar polêmica no Festival de Cannes graças ao protesto da equipe contra o impeachment de Dilma Rousseff, o filme Aquarius, dirigido por Kléber Mendonça Filho e com Sônia Braga no papel principal, é exibido em todo o Brasil. O longa-metragem tem como cenário um edifício da década de 1950, localizado na Praia de Boa Viagem, em Recife. Sua única moradora é Clara (Sônia Braga), uma jornalista aposentada que, após a passagem dos filhos para a vida adulta e a morte do marido, vive em um amplo apartamento com seu piano, muitos discos de vinil e livros sobre música, alguns de sua própria autoria. Clara não aceita a proposta de uma grande construtora que pretende adquirir todos os apartamentos do prédio e, no lugar do mesmo, erguer um condomínio de luxo. O que segue é a jornada de uma inteligente mulher – pressionada pela sociedade que a subestima – para preservar suas memórias e o sentimento de pertencimento.

Praticamente um estudo de personagem, o filme inteiro gira em torno de Clara, que em muitos momentos fica completamente sozinha em cena. Sônia Braga retorna ao cinema brasileiro com maestria, em um papel de complexidade que não é visto com frequência. Ela pode passar a ideia, no começo, de frigidez, mas o decorrer da trama mostra uma figura bondosa e as fragilidades da idade que vêm à tona facilmente. Com seus 65 anos, Clara exemplifica como o velho precisa se adaptar ao novo para não ser destruído, mas também, ao ressaltar o poder que certos tipos de materialidade possuem, que o novo não deve ignorar o que existiu antes dele. É impossível não sentir vergonha alheia ao ver uma jovem jornalista entrevistar a personagem e ficar sem palavras diante de seu monólogo sobre como mídias tidas como ultrapassadas (no caso, LPs) estão cheias de histórias e significados.

A autoria de Kléber Mendonça Filho, diretor e roteirista, é impactante, com a construção de uma atmosfera perpetuamente tensa. Lembrando os filmes de Tarantino, o enredo é divido em capítulos, apresenta uma potente trilha sonora (que inclui clássicos dos anos 70 e 80, favoritos de Clara, de Queen à Maria Bethânia) e interessantes escolhas de montagem e fotografia (por Pedro Sotero e Fabrício Tadeu), sendo muitos planos voltados para os pés da protagonista, com as unhas pintadas de vermelho. Quase se espera que ela esfaqueie alguém e o sangue domine a tela, mas a personagem seria distinta demais para isso. Realmente, tendo em vista todas as polêmicas em torno do filme (que incluem, além dos já mencionados protestos, críticas a sua alta classificação indicativa), ele é surpreendentemente pacífico no que se refere às agressões físicas.

A pressão sobre Clara, a “louca do Aquarius”, como ela mesma se intitula, ocorre seja por parte do responsável pelo projeto do condomínio (Humberto Carrão) ou pela filha (Maeve Jinkings), que precisa de dinheiro e a trata como uma idosa incapacitada, ainda que a mesma esteja longe disso. A primeira cena de Aquarius se passa em 1980, com uma jovem Clara – de cabelos curtos após se curar de um câncer – se divertindo com amigos antes de ir pra festa de aniversário de tia Lucia, proprietária original do apartamento, uma herança para a protagonista. Mais de trinta anos depois, Clara pode ter envelhecido, mas não deixou de ir para o baile com suas amigas, de beber suas garrafas de vinho, de fumar seus baseados (embora a recreação tenha sido substituída pelo escapismo) ou deixou sua vida sexual morrer.

Aquarius trata a sexualidade das personagens com grande naturalidade e mostra como esse elemento é importante na construção de memórias (existe algo mais essencial para a experiência humana do que o sexo ou a morte?). No aniversário de tia Lúcia, enquanto seus sobrinhos leem um poema, a mesma olha para uma cômoda e lembra de suas transas com o falecido marido. Clara vai para o baile e sai acompanhada e, depois disso, chama um michê por telefone. Ao passo que a sociedade se choca com manifestações do tipo vindas de idosos, o filme lembra que nunca deixamos de ser humanos. Também é interessante observar como um dos primeiros momentos de Braga em cena é chocante: famosa por personagens que esbanjavam sensualidade (vide Gabriela, Saramandaia, Hair, O Beijo da Mulher Aranha, etc.), Clara se despe antes do banho e, ao encarar a câmera, os espectadores percebem que ela perdeu uma mama graças ao câncer. Nada sensual.

O brilhante roteiro recheado de falas ácidas carregadas de verdades fica em boas mãos com Braga e os coadjuvantes (adequados, mas que não passam disso). A Clara das telas é um exemplo de superação e de resistência diante de injustiças que permeiam o cotidiano, o que se reflete nas exibições do filme. São comuns relatos de sessões de Aquarius seguidas por gritos de “Fora Temer” vindos da plateia. Logo antes dos créditos rolarem, Clara alfineta os proprietários da construtora: “Eu prefiro ser um câncer do que ter um câncer”.

          Lançamento: 1º de setembro                                Duração: 2h25

          Gênero: Drama/Suspense      Classificação Indicativa: 16 anos

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