Preconceito, violência, falta de afeto, poucas oportunidades e estatísticas cruéis marcam a vida de travestis e transgêneros no Brasil

Hoje, 29 de janeiro, é o Dia da Visibilidade Trans. E, exatamente uma semana atrás, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo divulgava dados mostrando que o número de casos de violência contra pessoas trans aumentou 17% em 2020. O número de homicídios passou de 19, entre janeiro e outubro de 2019, para 21, no mesmo período de 2020. Isso só em São Paulo.

O cenário do país é o mesmo: preconceitoviolência e crueldade contra travestis e transexuais. De acordo com levantamento feito pela ONG Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata, em números absolutos, pessoas trans em todos o mundo. Além disso, dados da União Nacional LGBT apontam que a expectativa de vida de um transgênero no Brasil é de apenas 35 anos. Geralmente, eles são mortos antes disso. No Dia da Visibilidade Trans, te convidamos a fazer uma reflexão: por que não a sociedade não aceita gêneros diferentes? Corpos diferentes? Por que não damos afeto para travestis e transexuais? Por que os matamos?

Aqui, uma linha do tempo da luta e das conquistas, ainda que poucas, do movimento no Brasil para te ajudar a entender o atraso e a precariedade do sistema:

1591: os registros do Santo Ofício do século XVI, mostram que Xica Manicongo foi a primeira travesti do Brasil. Moradora da Baixa do Sapateiro, em Salvador, Francisco Manicongo, ou melhor, Xica, era uma negra escravizada que se tornou símbolo de resistência.

1962: foi preciso 371 anos depois de Xica para nascer a primeira Instituição LGBTI+ do Brasil. A Turma OK, fundado no Rio de Janeiro, é o primeiro grupo de que se tem registro na história do Brasil. “Nós não tínhamos sede, então nos encontrávamos em nossos apartamentos para shows e apresentações. Não existiam aplausos, apenas estalar de dedos para não fazer barulho por conta da Ditadura Militar da época”, conta Amancio Cezar, atual presidente da Turma Ok. “Nossa vitória contra aquele regime e nossa resistência até aqui têm sido motivo de muito orgulho”, afirma.

1971: em dezembro deste ano foi feita a primeira cirurgia de mudança de sexo genital em uma mulher trans no Brasil. Seis anos depois, acontecia a primeira operação em um homem trans.

1990: a Organização Mundial de Saúde (OMS) retira a homossexualidade da lista internacional de doenças mentais. A decisão transformou o 17 de maio como Dia Internacional contra a Homofobia. Fazendo as contas, isso foi 31 atrás. Apenas.

1990: Roberta Close, que foi um ícone dos anos 80 com toda a polêmica que envolvia o seu corpo, torna-se a primeira modelo trans a posar nua para a Playboy. Ela havia feito a cirurgia de redesignação sexual um ano antes, na Inglaterra. A capa da revista tinha, então, a seguinte frase: “Pela primeira vez, o novo corpo de Roberta Close”.

2004: foi instituído o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Em 29 de janeiro, 27 transexuais e travestis foram ao Congresso Nacional, em Brasília, reivindicar seus direitos. Assim, o Ministério da Saúde formalizou o compromisso para a saúde da população gay, lésbica, bissexual, de travestis e transgêneros com a criação de um Comitê Técnico.

“Antes da pandemia, o dia 29 de janeiro era uma conquista muito legal porque a gente conseguia reunir um monte de travestis e transexuais em uma passeata. Mas, hoje, para mim, é só uma data. Eu não sinto mudança de janeiro para fevereiro, por exemplo. Os dados estão aí, eles são alarmantes e, no fim das contas, vai continuar morrendo trans hoje do mesmo jeito”, desabafa Felicious (@feliciofe), travesti, DJ, publicitária, comunicadora e podcaster.

2006: em Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o Sistema Único de Saúde passou a aceitar o uso do nome social, ou seja, aquele pelo qual travestis, transexuais e transgêneros querem ser chamados (as), em qualquer serviço da rede pública de saúde.

2008: dois anos depois, o Sistema Único de Saúde cria o processo transexualizador. A partir de duas portarias do Ministério da Saúde, 1.707 e 457, o reconhecimento da orientação sexual e da identidade de gênero tornaram-se determinantes dentro da saúde. O atendimento a pessoas trans passa a ser feito com uma rede de acolhimento com uma equipe multidisciplinar de psicólogos, endócrinos e cirurgiões. O SUS passa, então, a realizar neste ano a cirurgia de redesignação sexual. Algumas pessoas trans sofrem de disforia corporal e a mudança física é parte fundamental para o processo de transição e aceitação. Em 2020, foram feitas 3.440 cirurgias desse tipo no Brasil. Hoje, a fila de espera para a cirurgia pelo SUS pode chegar a dez anos.

2009: o primeiro ambulatório de saúde do Brasil dedicado exclusivamente a travestis e transexuais foi inaugurado pela Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo. Neste mesmo ano, foi fundada a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil – REDETRANS Brasil, instituição nacional que representa pessoas Travestis e Transexuais do País. “Um dos nossos objetivos é priorizar o fortalecimento de políticas públicas governamentais nas três esferas que ampare nossa comunidade”, explica Tathiane Aquino de Araújo, atual presidente da Rede Trans.

2016: a Defensoria Pública da União solicitou ao Conselho Nacional de Justiça que pessoas trans sem cirurgia tivessem também o direito de retificar o registro de nascimento. Assim, pela primeira vez, uma mulher trans mudou seu gênero e nome sem avaliação médica ou atestado. O caso aconteceu em outubro deste ano em São Bernardo do Campo, em São Paulo.

2017: Tiffany Abreu torna-se a primeira jogadora transexual brasileira a receber autorização da Federação Internacional de Vôlei (Fivb) para atuar com as mulheres. Ela atuava pelo Golem Palmi, time da segunda divisão da Itália. “Eu sabia que isso teria um impacto, mas não imaginava tanta repercussão. Achei que como havia uma lei que permitia isso e estudos que comprovavam que era possível, o debate seria menor – mas não adianta, transfóbicos sempre existirão e para eles pouco importam as leis”, desabafou Tifanny em conversa com a Glamour em 2020.

2018: o Supremo Tribunal Federal autorizou que pessoas trans possam mudar nome e gênero direto no cartório, sem precisar obter autorização judicial. Pela decisão, a alteração nos documentos passa a ser feita sem a exigência de mudanças físicas ou laudos médicos. “Esse é um marco muito importante para mim pois eu me beneficiei dele. Antigamente, o processo para mudança de nome e gênero era muito lento e oneroso. Eu me lembro do dia que eu peguei a minha identidade com meu nome correto. Coincidiu ser no Dia Internacional da Mulher, 08/03/208. Foi muito emocionante”, conta a modelo e influenciadora Bruna Andrade (@bru__andrade).

2018: este ano também marcou um número expressivo de mulheres trans a serem eleitas para o legislativo federal – foram mais de 50 candidaturas. Erica Malunguinho foi a primeira transexual eleita deputada estadual no Brasil, em São Paulo, e mais duas se elegeram por mandatos coletivos: Erika Hilton, pela Bancada Ativista, e Robeyoncé Lima, da Juntas, respectivamente em São Paulo e Pernambuco.

2020: dois anos depois, Erika Hilton torna-se vereadora de São Paulo com votação recorde.

Essas conquistas não são suficientes. “Ainda que esse dia seja para lembrar o quão precário são nossos acessos, que nossa comunidade ainda é vitima de violência diária, que ainda somos o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, é importante mostrar a realidade para que se crie soluções”, aponta Bruna. “Nossas vitórias foram oriundas de muita pressão social no judiciário”, lembra Tathiane. “O Dia da Visibilidade é realmente um dia de luta para lembrarmos a sociedade de que nós existimos”, finaliza Amancio Cesar.

Fonte: https://revistaglamour.globo.com/Lifestyle