Viver um dia após o outro
Conheça a história de Dona Veridiane Krause, uma mestre em jardinagem e cuidados com o lar, que luta para reconstruir o seu
Por Rafaela Stark
Foi em uma manhã de segunda-feira, com o céu cinza, carregado e uma chuva insistente, que dona Veridiane recebeu seu amado microondas de volta. Inscrita pelo filho mais velho, Guilherme, no projeto “Reconstruindo Lares” do Centro de Engenharias da UFPel, a jardineira e diarista abre a porta de sua casa para contar sua história.
O pátio da casa, repleto de plantas que a proprietária cultiva, guarda memórias de dias tristes, vividos pela terceira vez desde que se instalou no bairro Laranjal. Os muros brancos possuem marcas escuras, com cerca de um metro de altura, lembrando dos quase trinta dias em que a casa ficou inacessível.
Dona Veridiane explica que até hoje, passados mais de cinco meses da inundação, não conseguiu se restabelecer totalmente: “Aqui dentro de casa ainda ‘tá’ um caos, né? Porque não tem onde dormir, muita umidade […] nunca pensei que isso ia acontecer”. Além das perdas materiais, a psicológica se sobressai frente a exaustão de precisar se reerguer novamente. A moradora revela o desânimo em ver a casa desorganizada, com móveis faltando e outros danificados, bem como úmida, uma realidade inimaginável para alguém que tem como profissão a limpeza e organização.
O dia que durou um mês
Ela conta que quando as águas começaram a avançar, seus dois filhos ajudaram a subir alguns móveis para um mezanino que fica em um dos quartos, além da ajuda de um caminhão fretado para a retirada dos eletrodomésticos e outras mobílias. Logo depois, separaram alguns pertences, pegaram seus quatro cachorrinhos e se instalaram no abrigo da Escola Estadual Edmar Fetter, longe das margens da Lagoa dos Patos e do Canal São Gonçalo.
Apesar de todo o esforço, muitos objetos foram perdidos, como o fogão, camas, armários e vidros que estilhaçaram com a pressão da água. O mobiliário que ficou suspenso na casa também foi, em parte, danificado. A umidade extrema de uma casa inundada não poupou roupas, cobertores, colchões e o importante microondas, citado no início desta reportagem. O eletrodoméstico é uma herança da mãe de Veridiane, falecida vítima de pontada, adquirida durante a última enchente, no ano de 2015. O apego aos objetos que um dia foram da matriarca é visível, assim como sua alegria ao ver que ele não foi perdido para sempre.
Outro grande amor nas vidas da família Krause são os quatro cachorrinhos. Mili, uma senhorinha que era o xodó da mãe de Veridiane, Thor, Kevin – ou MC Kevin para os íntimos – e Mel, uma guerreira. Em setembro de 2023, durante uma briga entre cachorros, Mel ficou com seu pescoço e uma das patas severamente machucados. Com os cuidados veterinários e de seus tutores, a cachorrinha hoje esbanja saúde, alegria e fofura.
Os dois meninos, Guilherme e Gustavo, de vinte e seis e dezesseis anos, também salvaram uma de suas paixões: carrinhos. A coleção começou com o irmão mais velho, quando ele ainda era uma criança. Durante a segunda gravidez da mãe, Guilherme brincava com os carrinhos na barriga dela, já transmitindo para Gustavo o que seria uma tradição dos irmãos.
Uma outra luta
Ao longo das semanas que precisou ficar fora de casa, dona Veridiane enfrentou outra luta, mas essa é contra o câncer. Diagnosticada meses antes da tragédia, a diarista faz tratamento em Porto Alegre, cidade extremamente afetada pelas cheias. Contudo, ela diz que em nenhum momento o hospital responsável deixou de atender seus pacientes, apenas marcaram as consultas com um intervalo um pouco maior do que o de costume. Questionada sobre como foi encarar duas situações tão difíceis, ela responde: “[..] então, o psicológico é como tu diz, né, já era ruim, agora ‘tá’ abaixo de zero.”
Mesmo convivendo com a doença, Veridiane não deixa de ver beleza na vida. A todo momento, a mulher abre um sorriso enquanto fala de seu amor pelas plantas que cultiva, dos filhos zelosos e prestativos, dos filhotes de quatro patas que nunca cogitou deixar para trás. Seu segredo é viver um dia após o outro e jamais abrir mão do direito de sonhar.
Sobre medos e esperanças
Depois de vinte anos como residente do Laranjal, dona Veridiane quer ir embora. Ainda que seja admiradora da atual prefeita Paula Mascarenhas e de seu trabalho, ela afirma que a falta de manutenção dos esgotos e preparação por parte da própria prefeitura é a principal razão, além do receio de viver o impensável pela quarta vez. Na primeira enchente, em 2001, a casa ficou ilhada. A segunda, em 2015, cobriu o pátio de água e apodreceu o antigo chalé, os obrigando a demolir. Por fim, a terceira vez arrancou o reboco da casa de alvenaria, mofou as paredes e o teto da residência construída com anos de trabalho árduo. A fim de evitar uma nova tragédia, a moradora acredita que algumas medidas simples podem ser tomadas. “[…] acho que está faltando na limpeza dentro das valetas, dos canos. A água não está passando. Fica ali um tempão, entupido”, explica.
Quando perguntada sobre seu sonho de moradia, o rosto se ilumina, e num grande sorriso ela diz “quero ir para Bombinhas”. Apesar de nunca ter visitado a cidade praiana de Santa Catarina, Veridiane já é apaixonada pelas fotos e relatos de amigos. Agora, a senhora se permite devanear sobre um futuro melhor ao lado da família, em um lugar onde a água seja apenas sinônimo de calmaria e felicidade.
Saiba mais sobre a série de reportagens Artefatos recuperados, memórias resgatadas
A série de reportagens e conteúdo multimídia Artefatos recuperados, memórias resgatadas faz parte do projeto de extensão de mesmo nome, desenvolvido por estudantes de Jornalismo e Artes Visuais para divulgar o trabalho do projeto Recuperando Lares e recontar a história das pessoas atingidas pela enchente no município.
Você também pode acessar o conteúdo da série seguindo o projeto no TikTok (@juntospelareconstrucao) e no Instagram (@juntospelareconstrucao).