Quando a água recua, resta a força de quem recomeça
Um ano depois da maior catástrofe ambiental do RS, é tempo de esperança e recomeço
Por Bárbara Vencato e Paulo Lenczak
Mais de 470 municípios afetados, 2.398.255 pessoas atingidas, 806 feridos, 27 desaparecidos, 183 pessoas que se foram com a água. Esses são os números da maior tragédia ambiental da história do Rio Grande do Sul: a enchente de maio de 2024. Nos últimos dias do mês anterior, abril de 2024, a chuva forte e insistente começou a preocupar os moradores do vale do taquari. Região que, em setembro e novembro de 2023, tinha passado por situações muito parecidas. O medo de perder tudo novamente era real, mas eles não podiam imaginar a magnitude do que a força da natureza faria dessa vez.
Em diversos lugares choveu cinco vezes mais do que o esperado em três semanas consecutivas. Resultado: 95% do estado atingido, muitas cidades ilhadas, muitas famílias sem notícias, muita dúvida e muito medo. Na região sul não choveu tanto, porém toda essa água que varreu as cidades mais ao norte do Rio Grande do Sul precisava encontrar o oceano e, observando o mapa, fica fácil entender que o caminho dela teria Pelotas como ponto obrigatório.

Rios do vale do Taquari e da região metropolitana deságuam na Laguna dos Patos, que passa por Pelotas e, em Rio Grande, encontra o mar. Ilustração: Ana Alice Winter.
Se mais ao norte do estado as coisas começaram a complicar nos últimos dias de abril, em Pelotas o dia 8 de maio ficou marcado para os moradores do bairro Laranjal. Neste dia as águas chegaram à Lagoa dos Patos, que subiu e invadiu as ruas do bairro. Durante o mês de maio mais de mil pessoas passaram pelos abrigos de Pelotas e Rio Grande. Muitos perderam tudo que construíram e conquistaram com o trabalho de uma vida toda.
A enchente impactou todos os gaúchos, cada um à sua maneira. Por aqui nós já conhecemos a história da Veridiane Krause: moradora do bairro que pela terceira vez teve sua casa inundada pela cheia da Lagoa. Em maio de 2024 a água alcançou a marca de um metro deixando a casa inacessível por quase trinta dias e estragando muitos móveis, eletrodomésticos e memórias. Ela, os dois filhos e os quatro cachorrinhos da família se abrigaram durante esse período na Escola Estadual Edmar Fetter.
Clique aqui para saber mais sobre a história da Veridiane.
Reconstruindo Lares
Quem não teve sua casa atingida sentiu o chamado ao voluntariado. Foi o caso dos 25 participantes do projeto Reconstruindo Lares, que já foi apresentado em outra matéria dessa série, mas vale a recapitulação: servidores técnicos, professores e estudantes bolsistas e voluntários do Centro de Engenharias se uniram para amenizar o sofrimento e o prejuízo material das famílias atingidas pela enchente. A ideia do grupo era consertar os eletrodomésticos, utilizando o conhecimento adquirido na universidade em benefício da comunidade que tanto precisava.
Esse é o sentimento do voluntário do projeto e aluno da Engenharia Eletrônica, Andrei da Luz dos Santos: “Fazer um curso na Universidade Federal é um privilégio que não são todas as pessoas que tem. Então, quando tu consegue reverter isso com uma ajuda para alguém que está precisando, eu me sinto na verdade pagando uma dívida, esse é o sentimento, porque a sociedade como um todo contribuiu para eu poder estar aqui”.
Andrei e os colegas iniciaram os trabalhos de reparo no início do mês de junho de 2024. Três meses depois a equipe do Artefatos Recuperados esteve presente na oficina sediada no prédio do curso de Engenharia Industrial Madeireira, localizado na rua Conde de Porto Alegre quase esquina com a Santos Dumont. Passado esse tempo, os alunos relataram uma maior facilidade para identificar os defeitos nos equipamentos que aguardam por reparos.
“No início a gente não sabia tanto, para consertar uma máquina levava três, quatro dias. Hoje, em uma manhã a gente praticamente resolve tudo. É a questão de tu aprender a identificar melhor os problemas”, observa Ricardo Bunde, voluntário no Reconstruindo Lares.
Na ocasião, chamou a atenção da equipe a presença de algumas máquinas mais antigas na oficina. “Com ares de relíquia, e que não raro representam um apego emocional, para além do material, para os seus donos”, reflete Paulo, repórter do Artefatos Recuperados.
Ele conta que um desses equipamentos, justamente, era o que reunia a equipe, empenhada em realizar a limpeza dos componentes com gasolina, método ideal para retirar o excesso de graxa e sujeira. Apesar dos anos de uso, o equipamento continuava operante, mas não resistiu à força das águas. Após a intervenção do Reconstruindo Lares, ele deverá ser reativado e, possivelmente, apresentar um desempenho melhor do que tinha antes dos danos, graças à revisão e limpeza completa realizadas. “Se a pessoa fosse realizar o conserto deste modelo de máquina, o custo da mão de obra seria muito alto, não iria valer a pena. Como nós não cobramos o serviço, a recuperação se torna viável”, explica Gustavo Gauger, bolsista do projeto.
“O dia a dia parecia o de uma oficina profissional. Pela manhã, analisávamos os equipamentos em andamento, as peças e serviços necessários, e traçávamos metas, mesmo que de forma implícita. Normalmente, um professor levava lanche para todo mundo, e às vezes algum aluno também levava. Lanche nunca faltou!”, relata o professor Alejandro Martins, um dos coordenadores do projeto.
Ele conta que o projeto encerrou oficialmente no dia 15 de dezembro de 2024, mas o ritmo dos concertos já havia diminuído bastante em novembro. “O dinheiro para a compra de peças estava acabando, e pedir para que as famílias comprassem os componentes se mostrou difícil, por conta da situação financeira da maioria. Isso acabou desacelerando o trabalho”.
Ao todo, o projeto conseguiu recuperar 101 eletrodomésticos e atingir seu principal objetivo: ajudar as pessoas que foram tão afetadas pela enchente. Quando perguntado sobre o sentimento de ter feito um projeto que ajudou tantas famílias ele responde:
“Foi gigante. Sempre digo que esse tipo de trabalho de extensão com as famílias, especialmente com aquelas que sofreram tanto com a enchente, é uma via de mão dupla. Não é só uma doação de tempo — a gente recebe muito também. Ir até as casas, conversar com as pessoas, entender o contexto e as dificuldades no detalhe, e ainda aprender muito sobre conserto… é um ganho imenso. Espiritual e técnico — sendo que o primeiro é ‘muito maior’ que o segundo. Esse projeto nos ajuda a entender melhor a nós mesmos e o nosso papel no mundo. Foi, de longe, o projeto mais gratificante do qual já participei”.

Professor Alejandro em entrega de equipamentos recuperados a família no Laranjal. Crédito: Lara Nasi.
Daqui pra frente
Agora o projeto Artefatos Recuperados se volta às famílias que receberam esse auxílio tão especial. Já conhecemos a história da Veridiane e seu amado microondas e os nossos estudantes já visitaram a Lizandra Cordeiro, a Márcia Consuelo Kraemer e a Eva Regina Borges de Silveira que seguem tentando reconstruir seus lares até hoje. Acompanhe as próximas reportagens para conhecer essas e outras histórias!




