Para Boaventura de Souza Santos, o conhecimento científico [em saúde], produzido nas universidades, ao buscar o rigor para o rigor da verdade em seus projetos de sociedade, deixou de enfocar o bem comum, tornando-se reducionista em relação a complexidade da vida. Esta fragmentação acabou por boicotar a essência da produção e distribuição do conhecimento, gerando privilégios e aumentando desigualdades sociais.
Segundo Boaventura, a autonomia e aparente neutralidade das ciências [da saúde], baseadas na objetividade e no rigor da verdade, resultam em políticas com foco na economia das coisas em detrimento das pessoas. Conhecimentos construídos com este enfoque reduzem os resultados das ações em desenvolvimento tornando-as parciais e discriminatórias, avessas ao atendimento do bem comum.
Pessoas que sofrem por doenças crônicas e seus familiares ou amigos, não recebem atenção devida de quem preconiza um referencial de ciência baseado na economia, com foco no corte de gastos e na redução de custos. Muitas delas são jogadas a própria sorte, dependendo do poder de compra familiar, de serviços ou insumos, oferecidos pelo mercado.
Esta é uma postura científica e de gestão pública que, de acordo com Boaventura, é geradora de fascismo social. Além de discriminar categorias de portadores de doenças, identifica-se também com a exclusão territorial. A grande maioria de pessoas em situação de cuidados paliativos, abandonadas pelo sistema de saúde, são também moradoras de territórios com maiores carências infraestruturais das cidades, com baixo acesso a recursos humanos e materiais.
Para Boaventura, esta parte da sociedade é considerada indiferente ou invisível para a parte incluída da sociedade. Pessoas portadoras de doenças crônicas graves, sem possibilidade de cura, não existem, pois não vem ao caso para os favorecidos, além disso não se conhecem, não se relacionam, não tem voz e não tem peso político. Muitas pessoas ao serem diagnosticas com doenças incuráveis, são abandonadas com cuidados precários e muitas vezes morrem isolados, com muitas dores (sociais, psíquicas, físicas e espirituais) e com um mínimo de conforto, em corredores de Prontos Socorros ou em outros lugares insalubres, geralmente apartados do restante da sociedade.
Segundo Boaventura de Souza Santos:
“ É curioso ver a história desses fenômenos nas cidades. Porque a história das cidades, ao contrário do que pensamos, é de segmentação. A cidade medieval, por exemplo, é extremamente fragmentada e é, também, uma cidade em pedaços. O que acontece é que tinham inimigos externos. Eram cidades onde haviam divisões. Nas cidades italianas, por exemplo, havia o ‘popolo grasso’ e o ‘popolo magro’. Os gordos e magros, que se tornaram os ricos e os pobres. O que a cidade fazia era impor a todos eles uma lei única, que os defendia dos inimigos externos. É a partir da industrialização que os inimigos externos passam a ser inimigos internos, com o nascimento das classes perigosas dentro das cidades. E é aí que as cidades constroem, como diz Tereza Caldeira, os muros internos, com divisões. Penso que é fundamental que tenhamos em conta essa evolução que se deu na cidade medieval para a cidade moderna.”
É importante considerar nesta reflexão, o recente histórico da Unidade Cuidativa da UFPel.
A nossa sociedade e suas políticas públicas, incluindo as universitárias, são dominadas pela economia. Podemos ser objetivos na análise, interpretação e intervenção na realidade, mas nunca seremos neutros. Podemos seguir regras e metas, mas nunca seremos imparciais. Devemos sempre saber e definir de que lado estamos, para que e para quem trabalhamos na elaboração do conhecimento.
Em relações pluriversitárias ou transversitárias, como as que se pretende desenvolver e estimular na Cuidativa, inspirados em Boaventura de Souza Santos, há que haver paciências sociais e diálogos permanentes, resultantes da separação entre a busca da verdade e a busca do bem comum, dominadas pelo senso comum científico.
Ao realizarmos nosso trabalho profissional ou voluntário nos cuidados paliativos, devemos sempre estar atentos a formas de conhecimento e de organização, que emergem dos pacientes, dos cuidadores e seus familiares, que sejam capazes de nos surpreender. Muitas sabedorias existem e outras ideias são possíveis, além do conhecimento sistematizado e divulgado pela ciência formal, que estão introjetadas nas biografias / histórias de vida e que são formuladas e reformuladas pela capacidade reflexiva das pessoas, enquanto viverem. Antes da morte tudo é possível!
Referencial: Boaventura Sousa Santos – Professor e Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra / Portugal