[um homem com sua dor] [Paulo Leminski]

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
com se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa, um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios, édens, analgésicos
não me toquem nesse dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra

La vie en close (1991)

Fotografia de Mallarmé [Ferreira Gullar]

é uma foto
premeditada
como um crime

basta
reparar no arranjo
das roupas os cabelos
a barba tudo
adrede preparado
— um gesto e a manta
equilibrada sobre
os ombros
cairá — e
especialmente a mão
com a caneta
detida
acima da
folha em branco: tudo
à espera da eternidade

sabe-se
após o clique
a cena se desfez na
rue de Rome a vida voltou
a fluir imperfeita
mas
isso a foto não
captou que a foto
é a pose a suspensão
do tempo
agora
meras manchas
no papel raso
mas eis que
teu olhar
encontra o dele
(Mallarmé) que
ali
do fundo
da morte
olha

(Muitas vozes, 1989-1999)

Fato bruto [Leila Danziger]

A partir de uma foto do jornal O Globo, de 6 de agosto de 2005.

Encontrei a baleia encalhada
entre um anúncio de eletrodomésticos
e algumas notícias gastas.
Palavras de puro mato
envolviam sua carcaça triste e obscena.
A baleia pedia crônicas de espanto
mas nem as ondas revoltam-se –
não há assombro por sua carne inerte.
Na faixa de areia
a moça dá as costas ao fato bruto
que é uma baleia encalhada
e continua tranquila
seu bronzeado.

(Mas o sol não esquece
– naquele mesmo dia
há sessenta anos
– sobre o Pacífico –
o calor de dez mil rivais.)

Minha dúvida é onde fazer um túmulo digno para a baleia –
que conhece as águas e as cinzas.
Enterro seu corpo de imagem
por entre as páginas que nos contam o dilúvio.
Assinalo no calendário
– agosto é mês de baleias mortas.

Três ensaios de fala (2012)

Em Sarajevo [Claudia Roquette-Pinto]

Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.

Margem de manobra (2005)

Diante das fotos de Evandro Teixeira [Carlos Drummond de Andrade]

A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo, sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.

É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das imagens.

Fotografia — é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando,
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.

Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta,
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como exorcizar?

Marcas de enchente e de despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York,
a moça em flor no Jóquei Clube,

Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.

Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo,
viajas, surpreendes, testemunhas
a tormentosa vida do homem
e a esperança de brotar das cinzas.

Amar se aprende amando (1985)

O fotógrafo [Manoel de Barros]

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada minha aldeia estava morta
não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia
de braços com Maiakovski — seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Ensaios fotográficos (2000)

Recado aos amigos distantes [Cecília Meireles]

Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.

Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

1951

Segundo motivo da rosa [Cecília Meireles]

A Mário de Andrade

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas…
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas.

E a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas…

Mar absoluto e outros poemas (1945)

Lua Adversa [Cecília Meireles]

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…

Vaga música (1942)

Motivo [Cecília Meireles]

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Viagem (1939)