Cenário de filmes e símbolo de ciclo econômico

A Charqueada São João, aberta à visitação em Pelotas, serviu como palco para as gravações da minissérie de TV “Casa das Sete Mulheres” e o filme “O Tempo e o Vento”      

Por Vanessa Centeno Ferreira      

 

Além do seu valor histórico e museológico, a Charqueada é uma atração turística atualmente   Fotos: Vanessa Centeno Ferreira

 

A Charqueada São João é um antigo casarão rural, que se preserva atualmente em Pelotas como museu aberto à visitação e representa a arquitetura típica do Ciclo do Charque. Construído entre 1807 e 1810, às margens do Arroio Pelotas, foi um ponto estratégico para o escoamento da produção da carne salgada. Era a residência da família do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves, figura de destaque no contexto econômico da época. A produção dependia massivamente de mão de obra escravizada, o que faz parte da sua memória histórica. A riqueza gerada por essa economia impulsionou o crescimento urbano, social e arquitetônico da cidade de Pelotas e região.

Neste local, a minissérie de televisão “Casa das Sete Mulheres” foi gravada em 2002 para ser exibida em 2003. A produção foi filmada em Pelotas e outras cidades do Rio Grande Do Sul, como Cambará do Sul, São José dos Ausentes e Uruguaiana, para retratar a Revolução Farroupilha. É baseada no livro do mesmo título da escritora Letícia Wierzchowski, adaptado por Maria Adelaide Amaral e Walther Negrão e direção geral de Jayme Monjardim.

Já o filme “O Tempo e o Vento” (2012), baseado no primeiro volume da série do escritor gaúcho Érico Verissimo, também teve suas gravações na Charqueada São João e diversas cidades do Rio Grande do Sul. A cidade cenográfica foi construída em Bagé e em Pelotas, com direção de Jaime Monjardim.

A “Casa das Sete Mulheres” foi ao ar pela TV Globo entre 7 de janeiro e 8 de abril de 2003, com 24 capítulos, retratando a Revolução Farroupilha sob o olhar feminino das mulheres da família do líder separatista Bento Gonçalves. Ambientada no século XIX, a história mistura drama, romance e guerra, destacando a força, os dilemas e os amores de sete mulheres que viveram em meio ao conflito que marcou o sul do Brasil.

A trilogia “O  Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, é uma das obras mais importantes da literatura brasileira, em especial o primeiro livro, “O Continente”, que narra a formação do estado do Rio Grande do Sul, através das famílias Terra e Cambará. A obra é tão impactante que ganhou diversas adaptações audiovisuais, a mais recente delas dirigida por Jayme Monjardim e lançada no ano de 2013. Há também uma versão produzida como minissérie em 1985

 

Figueira com cerca de cinco séculos é cultuada por atender desejos

 

Charqueada São João é patrimônio cultural

A Charqueada São João é administrada hoje pela família Mazza e pelo proprietário Marcelo Mazza Terra. Eles administram a propriedade desde 1949, portanto não tiveram contato com a fazenda no período da escravidão, que foi iniciada em 1737, com as primeiras expedições dos negros escravizados na cidade de Rio Grande, até 1884.

A avó do Marcelo Mazza, dona Noris Mazza, recebeu essa propriedade extensa, de seis hectares, como um presente de casamento do seu esposo. Antes disso, a Charqueada foi propriedade de quatro famílias. O primeiro proprietário foi o português Antônio José Gonçalves Chaves, que construiu a casa entre 1807 e 1810, no período em que a escravidão já estava estabelecida no Estado. A casa pertenceu a algumas gerações da família de José Gonçalves Chaves   e depois teve outras três famílias proprietárias entre a família do fundador e a família Mazza, totalizando assim cinco famílias.

A casa, que hoje é tombada como parte do Patrimônio Histórico, tem aproximadamente 30 cômodos. É dividida em ambientes, como a sala de descanso dos tropeiros, que antigamente servia como lugar de repouso para os homens trabalhadores que traziam o gado para a Charqueada. Havia uma área de refeição exclusiva para eles, cozinha, quarto, sala de jantar do dono da casa, quartos de hóspedes, quartos de moças com uma estrutura planejada, sem janelas e sem saída direto para o pátio da fazenda.

 

A arquitetura da época do império português promove o resgate histórico

 

Reconhecimento nacional no audiovisual

A fazenda, que anteriormente deu lugar ao trabalho escravo, é marcada por um período de dor e tortura, uma época de poderes relativos aos interesses políticos e hierarquias diversas. Às margens do arroio Pelotas, era um importante polo dos negócios estabilizados com a fabricação do charque, a carne bovina salgada e seca ao sol, que servia como base da economia gaúcha entre os séculos XVIII e XIX.

Só teve seu reconhecimento como patrimônio cultural a partir do ano 2000, configurando-se também como uma atração turística da cidade. Ela não foi adquirida pelos proprietários com essa finalidade, mas a curiosidade do público, alimentada inclusive pela produção audiovisual, fez com que abrissem suas portas para o as atividades de turismo.

 

Recantos unem a beleza da natureza com memória histórica

 

Gravações da minissérie “A Casa das Sete Mulheres” e do filme “O Tempo e o Vento”

As gravações da minissérie “A Casa das Sete Mulheres” ocorreram na área externa e no pátio interno do casarão. Já o filme “O Tempo e o Vento”, em 2012, utilizou como cenário alguns cômodos dentro da casa. Os atores, nesse período, ficaram hospedados no próprio local e em hotéis das cidades próximas. Foi um período bem movimentado na região, e os fãs ficavam em alvoroço com grande expectativa para ver os atores chegarem para as gravações no portão de entrada, explica a historiadora e instrutora Luise de Oliveira Rodrigues.

Os atores gostavam do clima da Charqueada e tomavam juntos chimarrão, a típica bebida quente gaúcha, feita com erva mate. Esse momento da alegria estampada deles ficou registrado nas fotos e muitos autógrafos dos atores que fizeram parte da minissérie “A Casa das Sete Mulheres”, como pode ser visto no local e no site da instituição. Até hoje o ator Thiago Lacerda mantém contato com a organização.

Luise de Oliveira Rodrigues é historiadora pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e atua como monitora no local há mais de 18 meses. Sentindo-se acolhida, esse trabalho foi uma oportunidade de ela desenvolver um conhecimento aprofundado sobre o modo de vida da época e o ciclo econômico, embora lembre-se do período da escravidão que esteve presente na fazenda. Tem dias que essa memória lastimável chega até ela, tem dias que é mais a perspectiva da arquitetura da casa, noutros em que a beleza da natureza e dos objetos preservados ganham destaque. Assim, há que se compreender toda a amplitude da Charqueada São João.

 

As águas foram cruciais para a atividade econômica e hoje propiciam uma atração a mais para visitantes

 

A senzala e a casa do feitor

O casarão fica à frente de mais  duas construções, a senzala e a casa do feitor, que era o responsável por controlar a movimentação dos escravos ao redor e o responsável por aplicar os castigos no tronco ou pau de açoite, ou pelourinho. A casa do feitor hoje tem duas janelas, mas originalmente tinha somente uma. O prédio, atualmente, está adaptado para servir de moradia. Na porta da senzala, que tem alguns azulejos ao redor, o cadeado que trancava a porta é preservado até hoje, como parte das visitas guiadas.

 

Foi conservada somente a fachada da antiga senzala do período escravocrata

 

As duas estruturas, tanto a senzala como a casa do feitor, têm apenas a fachada original. Quando a família Mazza adquiriu a propriedade, em 1949, já estavam assim, com a parte frontal somente. O restante já não existia mais. A família Mazza teve a sensibilidade de não destruir a fachada da senzala. Pois já havia o entendimento para eles sobre o valor histórico do Casarão e os resquícios do que havia ao redor. O seu valor  para o conhecimento do passado vem sendo encontrado por todos os visitantes. Primeiro há que se passar pela parte triste da escravidão, não têm como omitir, e a família preservou essa parte que registra a história.

A figueira mágica de 500 Anos

Na Charqueada, existe mais de uma figueira, mas há uma prestigiada pelos visitantes com seus 500 anos de idade. Conforme a historiadora Luise, essa longevidade foi confirmada por um grupo de pesquisadores japoneses, que, há alguns anos, realizaram testes na árvore e chegaram a essa conclusão. Os visitantes recorrem a ela para a realização de pedidos, sendo a planta imponente carinhosamente chamada de  “vovozinha”.

O pátio da Charqueada São João é também local de cerimônias como casamentos e formaturas, entre outros eventos comemorativos. As cerimônias de casamento são feitas embaixo da figueira centenária. Depois, os convidados são recepcionados no salão de festas que fica próximo às margens do arroio Pelotas.

 

Árvore constitui grande espaço verde que se completa com o canto dos pássaros

 

A figueira mágica, como é conhecida, é realizadora de pedidos dos visitantes que tocam as suas enormes e gigantes raízes. A crença se justifica por ser uma árvore muito antiga e ter prestigiado muitos acontecimentos. Com todo o clima presente ao seu redor, o verde da natureza e o som do canto dos pássaros, é um local muito acolhedor.

Luise Rodrigues relata que muitos visitantes já voltaram para confirmar que seus pedidos foram atendidos, casamentos pedidos na raiz da figueira foram realizados no local, e ela mesma já teve seu pedido atendido.

 

Beleza da natureza acompanha a reflexão que se faz da história

 

Informações para passeios e eventos

Para passeios e visitas, o funcionamento é todos os dias (nas segundas-feiras, das 14h às 18h; de terça-feira a sábado, das 9h às 18h. Domingos e feriados, das 10h às 14h. Há disponíveis os serviços de visita guiada, almoço e passeio de barco. Casamentos também são realizados sob agendamento, assim como a utilização do espaço para fotografias, formaturas, buquê de 15 anos, etc. Para o almoço e o passeio de barco, devem ser feitas reservas com antecedência, pelos contatos do wattsapp 53- 98106-1810 e e-mail: charqueadasj@gmail.com

 

Museu remete à história, literatura e criação audiovisual

 

A Casa das Sete Mulheres chega às novas gerações

A minissérie tem conquistado fãs pelo Brasil a fora desde a sua primeira exibição. Todos que hoje prestigiam e apreciam a história gaúcha em “A Casa das Sete Mulheres” não eram nem nascidos no período em que foi exibida na rede aberta. E foi o que aconteceu com o jovem mineiro, de Uberaba, estudante de Direito, Gustavo Bruno de Oliveira, que tem 22 anos.                                                

Seu primeiro contato com a minissérie foi quando a Rede Globo reprisou em 2012 no horário político para aparelhos com antena parabólica. Ele tinha apenas 9 anos, mas se encantou com a minissérie. Anos depois, em 2019, assistiu novamente por conta própria pela internet e novamente se encantou. Ele relata que sentiu falta de um lugar em que os fãs poderiam se unir e para a divulgação dessa série, que, apesar de muito boa, tem sido esquecida.

Então ele criou uma página na internet com essa intenção. Apesar de, atualmente, não ter tanto tempo para postar, continua amando muito todo esse universo da série. “Sou mineiro e até o momento não conheço o Rio Grande do Sul, mas isso não foi impedimento para eu me envolver com a história”.

Ano passado ele leu a trilogia “O Tempo e o Vento”, também ficou influenciado pela obra, por se passar em um universo semelhante. “E os livros são maravilhosos, já havia assistido o filme de 2013, que é incrível, mas os livros são ainda mais completos, tanto ‘A Casa das Sete Mulheres’, quanto ‘O Tempo e o Vento’ vão fazer sempre parte da minha história”, conclui.

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