Trazendo referências ocidentais o anime Gachiakuta se destaca fora do Japão e causa controversas no Oriente
Por Gustavo Oliveira
A arte sempre esteve profundamente ligada à cultura. Quando pensamos em um país ou região, são justamente os costumes, as cores e os símbolos mais recorrentes que moldam o imaginário coletivo. Com o Japão não é diferente. A simples menção à “Terra do Sol Nascente” costuma evocar imagens como quimonos, sakuras em flor (flores de cerejeira) e, claro, os animes. Estes são elementos que, para muitos, definem visual e culturalmente o país.
Durante milênios, o Japão consolidou uma tradição estética própria. Mesmo com o crescimento tecnológico e modernização de sua engenharia, buscaram por minimalismo, disciplina visual e harmonia com a natureza, mesclando referências históricas e uma modernidade estilizada. Essa identidade visual forte é uma das razões pelas quais a cultura japonesa conquistou o mundo tão rapidamente nas últimas décadas.
O crescimento tardio dos animes no Ocidente
Nos últimos anos, a cultura dos animes passou por uma expansão inédita no Ocidente. O que antes era nichado e difícil de acessar, hoje está disponível a poucos cliques, impulsionado pela globalização digital e pelo avanço das plataformas de streaming.
Um fato que reforça essa visão é a presença expressiva de animes no cinema, principalmente neste ano com títulos como “Demon Slayer” e “Chainsaw Man” que, respectivamente, atingiram um faturamento de U$ 700 milhões e U$ 168 milhões. Consolidaram a indústria dos animes no cinema e abriram os olhos de grandes empresas para um investimento maior nesse meio, já que “Demon Slayer”, por exemplo, lucrou 34 vezes o valor investido.
Mas por que esse sucesso só chegou agora?
Historicamente, os animes eram produzidos para o público japonês e refletiam valores, rituais, referências sociais e códigos culturais específicos. Até os anos 2000, a indústria não tinha como prioridade a internacionalização: concentrava-se em atender nichos domésticos, desde animações infantis até séries adultas exibidas no fim da noite. As narrativas, os arquétipos e até a construção visual eram moldados para fazer sentido dentro do cotidiano japonês, não para conquistar o mercado global.
O anime/mangá: Gachiakuta
Lançado em fevereiro de 2022, “Gachiakuta” — escrito pela autora Kei Urana — foge da estética tradicional que marcou a indústria por décadas. A obra apresenta um universo marcado pelo underground, pelo grafite, pela moda de rua e por uma forte influência do hip-hop.
A história de ação e fantasia sombria acompanha Rudo, um jovem da periferia de uma cidade flutuante que é falsamente acusado de assassinato e exilado para o “Poço”, um lixão infernal habitado por monstros. Lá, ele precisa dominar um novo poder e se unir aos “Limpadores” para lutar contra os monstros e buscar vingança contra aqueles que o injustiçaram.

Cena de Gachiakuta com um personagem de cabelos claros mostrando duas expressões intensas: primeiro com olhos arregalados e sorriso agressivo, depois com um sorriso fechado e tenso
Em vez de símbolos historicamente associados ao Japão, o mangá adota uma estética mais próxima das culturas urbanas ocidentais. Kei tem uma forte inspiração na cultura negra americana, principalmente no design de seus personagens, o uso de roupas largas e até o modo de agir e a personalidade de cada personagem é muito diferente do comum visto em obras vindas do Japão. Ao passar as páginas se percebe — mesmo que não proposital — uma relação da estética de Gachiakuta com o expressionismo alemão dos anos 1910/1920, os ambientes caóticos, a estética suja, quase feita à mão e as expressões dos personagens muito exageradas e extremas.
Gachiakuta: Medíocre no Oriente, sucesso no Ocidente
Essa escolha impactou diretamente sua recepção no mercado japonês. Antes do lançamento do anime, no início de 2024, Gachiakuta registrava queda nas vendas e era visto como uma obra mediana. Críticos e parte do público japonês consideravam a estética “pouco familiar”, distante da identidade visual que tradicionalmente molda a cultura do mangá.
No entanto, quando o anime chegou ao Ocidente, ocorreu o oposto. A estética street, o ritmo energético e a atmosfera suja e industrial chamaram atenção imediata. Com o aumento da visibilidade internacional, o mangá voltou a crescer em vendas dentro do próprio Japão, um fenômeno impulsionado justamente por seu diálogo com culturas externas.
Crunchyroll é uma plataforma on-line de streaming internacional com foco em distribuição de mídias orientais, incluindo anime, mangá, doramas (séries de TV asiáticas), música e entretenimento eletrônico. Camila Moura, 22 anos, recepcionista e fã de anime desde os nove, conta que conheceu Gachiakuta por meio de campanhas de divulgação no TikTok. “Estava aparecendo muito comercial da Crunchyroll, e de cara o que mais me chamou a atenção foi o traço e o estilo do anime. Ao mesmo tempo que a estética puxa para os anos 1990/2000, ainda é muito atual”, afirma.
Ela destaca também o impacto visual do personagem Enjin, especialmente por conta das tatuagens. Esse comentário evidencia um ponto importante para entender por que a obra pode ter menor repercussão no Oriente. No Japão, tatuagens — sobretudo quando visíveis — ainda carregam uma forte associação histórica com a yakuza (organização criminosa), o que faz com que muitos espaços, como piscinas e banhos termais, proíbam a entrada de pessoas tatuadas. Enquanto parte da população mais velha mantém a visão de desconfiança, as gerações mais jovens já encaram tatuagens como moda e expressão artística. A rejeição, com certeza diminuiu, mas nada comparado ao ocidente.

Painel do mangá de Gachiakuta mostrando o personagem Enjin, com cabelo de cor clara e tatuagens
Por que o Japão resistiu ao hip-hop por tanto tempo?
Para entender essa resistência inicial, é preciso lembrar que o Japão é uma sociedade de “alto contexto”, na qual grande parte da comunicação é implícita e, ao mesmo tempo, compartilhada por aqueles que se identificam culturalmente. Como afirma o professor japonês Shoochi Takaaki ao canal do YouTube “Eu Falo Japonês”, “na língua japonesa, mesmo que ninguém diga certas coisas, elas são óbvias para todos”.
Uma cultura de alto contexto é uma cultura ou sociedade que se comunica predominantemente por meio de elementos contextuais, como formas específicas de linguagem corporal, o status de um indivíduo e o tom de voz empregado durante a fala. As regras não são escritas ou declaradas de forma direta ou explícita.
Em culturas assim, os membros compartilham repertórios, códigos e expectativas muito rígidas. “Se um estudante japonês cometer um erro no modo de vida ou escolher uma palavra inadequada, pode receber uma resposta dura da sociedade”.
A cultura hip-hop só chegou ao Japão nos anos 1980 e, no início, não foi recebida como uma forma legítima de expressão artística.
O país, sendo pautado por normas sociais rígidas, educação disciplinada e forte expectativa de conformidade, via o hip-hop como uma manifestação ligada à rebeldia e à delinquência juvenil. O grafite era rotulado como vandalismo, enquanto roupas largas, correntes e visual de rua eram percebidos como uma ruptura com os códigos tradicionais de aparência e comportamento.

Painel do mangá Gachiakuta onde dois artistas encapuzados pintam um grande mural urbano
Com o tempo, o Japão reinterpretou o hip-hop de sua própria forma, criando versões locais que combinam moda, música e estética visual. Mesmo assim, a relação com o movimento continua carregada de contrastes entre tradição, modernidade e influências externas.
Gachiakuta surge justamente nesse ponto de encontro — no qual a cultura japonesa dialoga com o mundo, mas ainda enfrenta tensões internas quando elementos “estrangeiros” desafiam o imaginário estético local.
O questionamento final que fica é: o Ocidente tem força para sustentar uma obra oriental? Em uma sociedade cada vez menos rígida e continuamente moldada por uma globalização acelerada, a resposta tende a ser positiva. Gachiakuta, porém, segue o caminho inverso. Em vez de se adaptar às expectativas do público japonês, a autora Kei Urana aposta na própria identidade e incorpora livremente as referências que constituem seu repertório.
Do ponto de vista técnico, seja no roteiro, na quadrinização do mangá ou na animação, a obra pode agradar ou não. Mas há um ponto inegociável: Gachiakuta tem personalidade. E muita.
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