“Amores Materialistas”: análise  do afeto na era do capitalismo

Estabelecendo o amor como uma moeda de troca, a diretora Celine Song investiga as nuances dos relacionamentos afetivos no século XXI      

Por Maria Clara Goulart     

Grande parte do discurso on-line sobre o romance no cinema hoje é marcado pela saudade, a nostalgia pelas grandes declarações de amor, pelas coincidências improváveis e pelo diálogo afiado das comédias românticas dos anos 1990 e 2000. Mas, por trás dessa nostalgia, há uma admissão silenciosa: aquelas histórias que começavam com um telefonema para um programa de rádio ou se estendiam por uma década de “eles vão ou não vão ficar juntos” simplesmente já não existem.

Namorar no século XXI tem menos a ver com destino e mais com termos e condições, e o casamento muitas vezes funciona mais como um contrato comercial do que como um gesto arrebatador de devoção. Em “Amores Materialistas” (2025), Celine Song encara essa realidade de frente, tentando conciliar o peso do capitalismo sobre nossas vidas emocionais com o fascínio persistente do amor. O resultado é um filme que busca tanto o romance quanto a crítica, embora nem sempre com o equilíbrio necessário.

“Amores Materialistas” tenta transmitir ao público essa ideia como se fosse nova. O casamento, em essência, é um contrato. E, ao estabelecer um conceito antigo o suficiente para preceder a própria forma do cinema, o filme também tenta convencer que amar, apesar do capitalismo, é a verdadeira razão para se casar, ou pelo menos para namorar.

 

Lucy (Dakota Johnson) e John (Chris Evans) conversam sobre o futuro de seu relacionamento    Fotos: Divulgação/IMBD

 

Embora o diagnóstico esteja correto, o capitalismo corrói ativamente nossos valores morais e emocionais, e talvez seja hora de tentar romper essas amarras, o filme tropeça em personagens rasos e numa narrativa que se arrasta até a obviedade, beirando o risível. Não que Song faça um mau trabalho; o problema é que o público não recebe o material certo, nem o tempo necessário, para absorver o que ela quer dizer.

A trama acompanha Lucy (Dakota Johnson), nova-iorquina, que trabalha na indústria de casamenteiros, ganhando 80 mil dólares por ano, vinda de um passado pobre e disfuncional e assumidamente materialista, como ela descreveria. Conhecemos sua vida pessoal e profissional quando ela celebra seu nono casamento como casamenteira, reencontra o ex-namorado falido, John (Chris Evans), e conhece Harry (Pedro Pascal), irmão do noivo e homem tão improvável que ela e suas colegas o chamam de “unicórnio”.

Lucy não está dividida entre dois amores, como se poderia esperar, como já ficou claro que não estamos mais nos anos 2000. Sua preocupação real é com o que cada um pode oferecer em termos de bens e estabilidade financeira. Nesse aspecto, Song mostra sua maestria como roteirista e diretora, já provada em “Past Lives”: nós, assim como Lucy, aceitamos seu materialismo não como defeito, mas como parte de quem ela é.

Vemos como ela mede seu valor próprio nos presentes que recebe, nos lugares para onde é levada e na qualidade da comida que come. E, por mais que tentemos nos agarrar a crenças moralistas sobre “pessoas gananciosas”, Lucy (não por causa da atuação morna de Johnson) é tão identificável quanto outras protagonistas do gênero — aquela que não é vista, não é valorizada, não é suficiente, mas encontra algo em que é boa e alguém disposto a amá-la por quem ela é.

O problema é que, ao tentar sustentar uma mensagem maior, de resistência ao capitalismo e de defesa do amor idealista, Song acaba diminuindo o escopo da questão. Por mais que capitalismo e sistema de classes alimentem a opressão de mulheres e minorias, o filme parece simplificar demais esses efeitos, de forma que um casamento por amor fosse resposta suficiente aos mal causados por esse sistema.

 

Lucy (Dakota Johnson) e Harry (Pedro Pascal) dançam em uma festa de  casamento

 

Song também se perde ao inserir Sophie (Zoe Winters) – cliente de Lucy que é assediada sexualmente em um dos encontros organizados pela casamenteira – como parte da narrativa de descoberta pessoal da personagem principal. Há várias formas de abordar o abuso sexual no cinema, mas transformá-lo no fator decisivo para que Lucy escolha entre o “príncipe” e o “plebeu” soa agridoce. Não é exatamente uma tomada de posição, mas uma tentativa tímida de torná-la mais empática e menos julgadora. Ao buscar humanizar a protagonista, a diretora esquece que o que realmente a tornaria humana são justamente seus defeitos.

Ainda assim, é impossível negar que “Amores Materialistas” é impecável no que diz respeito à estética. Os cenários, a paleta de cores e a direção de arte evocam com delicadeza a atmosfera das comédias românticas clássicas, com uma ambientação que faz cada cena parecer tirada de um cartão-postal. Há um cuidado visível na composição de cada enquadramento e um uso de luz e no figurino dos personagens, em especial Lucy, de forma que estes aspectos conversem diretamente com a sua narrativa. Surpreendentemente, Chris Evans entrega uma atuação sólida e contida, fugindo do óbvio e trazendo nuances inesperadas ao seu personagem. Tecnicamente, o filme é bem executado: a fotografia, a edição e o desenho de produção elevam o material e tornam a experiência visualmente agradável, mesmo quando a narrativa patina.

A final de contas, “Amores Materialistas” quer unir o brilho nostálgico das comédias românticas do passado a um comentário sóbrio sobre o amor sob o capitalismo, mas essa união nunca se concretiza. É um filme preso entre o cinismo e o idealismo, hesitando em se comprometer com qualquer um dos dois. Assim como Lucy, sabe o que quer receber, mas reluta em decidir o que está disposto a oferecer. E talvez seja por isso que, quando os créditos sobem, você não fica com o frio na barriga do romance, mas com o lembrete silencioso de que algumas histórias de amor simplesmente funcionam melhor no cinema.

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