“Não vou enganar você: este não é um livro para ser bebido num gole só. Carla não escreve, borda. Cada frase mais sublinhada que a outra. Pois então deixe de lado a sede de história e leia tomando gosto, que às vezes o caldo queima a boca”
Por Martha Cristina Melo

“Tudo É Rio” marca a estreia literária de Carla Madeira já como um sucesso editorial
Cris Guerra, escritora mineira e responsável pelo prefácio de “Tudo É Rio”, é feliz ao afirmar que, de fato, Carla Madeira não escreve. Borda. O mesmo prefácio que convida, também desafia o leitor a conhecer uma narrativa intensa e nem sempre “difícil de engolir”. Como metáfora de um rio, a vida é apresentada em fluxo constante: tudo traz, tudo leva e, principalmente, tudo lava.
Publicado em 2014 pela Editora Quixote, “Tudo É Rio” marca a estreia literária de Carla Madeira e é sucesso editorial, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Com texto de apresentação assinado por Martha Medeiros, o livro foi relançado em 2021 pela Editora Record, e conquistou sexto lugar na lista de mais vendidos da Amazon em 2024, segundo a própria empresa.
“Tudo é Rio, como sugere o título, é líquido. (…) Mas Carla consegue não deixar cair nem um pingo para fora da narrativa, a prosa nunca escorre para o sentimentalismo barato, não há enchente, transbordamento, excesso – a precisão de sua literatura é absoluta” – Martha Medeiros
Sua narrativa acontece em o que parece uma cidade interiorana, embora a autora nunca precise nomear ou delimitar espaço. Essa ambientação implícita, por sua vez, é um dos méritos da escrita de Carla, que constrói atmosferas mais pelo que deixa subentendido do que pelo afirma. O ano em que se passa a trama, assim como sua cidade, é irrelevante.
A história acompanha três personagens principais, cujas vidas se cruzam em ensaios intensos e, por muitas vezes, irreparáveis. Dalva e Venâncio formam um casal jovem, vivendo o auge da paixão. Ambos cresceram na mesma cidade que, por sua vez, presenciou o nascimento de um amor profundo e de uma família linda. Entretanto, por baixo da leveza, nas camadas mais profundas da mente de Venâncio, nasceram a obsessão e o ciúmes “descontrolado”.
Em determinado momento da história, tudo muda: uma tragédia que obriga o leitor a pausar a leitura também cria um abismo entre Dalva e Venâncio. Desnorteados, ambos seguem seus caminhos e, apesar de permanecerem sob o mesmo teto, passam a buscar refúgio individualmente. Dalva, desde o princípio da trama, passa a sair todos os dias pela manhã, por anos, e volta à noite. Venâncio, um pouco mais previsível, começa a frequentar o prostíbulo da cidade. É lá que conhece Lucy, a prostituta mais desejada da região e uma das personagens centrais da obra.
Lucy, por sua vez, é uma questão à parte. A narrativa retrata a prostituição de forma que divide opiniões. Apesar das críticas à possível hipersexualização da personagem, é possível observar que sua construção carrega uma intencionalidade lúdica, intensa e impulsiva. Lucy é quase uma caricatura de si mesma, e talvez por isso tão humana. Ainda assim, há quem questione uma construção tão apoiada em personagens secundários e o espaço excessivo dedicado à perspectiva masculina – o que o homem pensa, o que o leva a agir, seu instinto sexual animalesco –, um recorte que, por vezes, parece reforçar o protagonismo do olhar masculino sobre a história.
O fato é que Lucy é uma boa prostituta, orgulhosa de seu trabalho e livre de qualquer tipo de amarra – ainda que isso signifique ignorar questões emocionais e viver completamente sozinha no mundo. Sua história cruza com a de Venâncio no momento em que ele nega envolvimento com ela, o que é suficiente para criar uma obsessão pelo personagem por parte de Lucy.
A trama guarda uma reviravolta que suaviza o peso do que já passou, ainda que possamos questionar se foi necessária. As personagens, no entanto, são consistentemente bem construídas, com peculiaridades próprias e históricos individuais, descritos com a fluidez da escrita de Carla Madeira (e de um rio). Além das figuras principais, destaco, em especial, a construção da mãe de Dalva. Aurora é uma mulher forte, sábia, terna e extremamente corajosa. Com papel essencial na história, Carla Madeira a descreve de forma a encantar com tanta inteligência e sensibilidade, ainda que dentro de suas vivências e conservadorismos.
“Eu disse que Deus é de sentir e não paro de falar. Sei que estou inventando um pouco também, tentando adivinhar o que pode trazer alívio para sua dor, tentando fazer alguma coisa. Quero lavar seus pés com água morna, oferecer a alegria de uma comida boa, uma cama macia, carinhos até você adormecer. É só isso que uma mãe pode fazer, mesmo com todo o seu amor. Deus é mãe, sofre também de impotências, mas está sempre lá , pronto para virar as noites acordado e não deixar a gente sozinho “.

Um retrato da vida como ela é
É fundamental entender que “Tudo é Rio” não é, necessariamente, uma história com conclusão que satisfaz o leitor. Como a história acaba, levanta questionamentos, isso porque nem todas as atitudes das personagens são esclarecidas ou devem ser compreendidas – afinal, nenhum tipo de arte se compromete com conclusões morais ou com “o que deveria ter sido feito”. Inúmeras críticas à obra e às escolhas narrativas de Carla partem de uma revolta com o que o livro tenta passar, mas, na verdade, a obra é paralela com a realidade em um sentido: nem tudo é como deve ser. E talvez a beleza do livro esteja na verossimilhança.
A simplicidade da escrita de Carla Madeira que não deixa de ser poética é um bálsamo que aproxima o leitor e não simplifica grandes acontecimentos. Como citado anteriormente, a subjetividade é uma das belezas da narrativa de “Tudo É Rio”.
Humanizando decisões questionáveis, “Tudo É Rio” nos obriga a encarar a realidade através da arte, à medida que nos faz compreender que, muitas vezes, fazemos o que podemos. Afinal, no “fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos”.
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