História cinematográfica entra em sintonia com o trabalho musical de vários artistas que batalham para a contínua valorização da expressão sonora do blues
Por Amanda Marin

Michael B. Jordan está nos papéis dos gêmeos Stack e Smoke Foto Divulgação
Lançado mundialmente em 3 de abril de 2025 nos serviços de streaming, “Pecadores” é a nova obra de Ryan Coogler, cineasta de referência no cinema negro contemporâneo, diretor de “Pantera Negra”, “Creed” e “FIG”. Ambientado em 1932, no Delta do Mississippi, o filme “Pecadores” narra a trajetória dos gêmeos Stack e Smoke, interpretados por Michael B. Jordan, que retornam à cidade natal para abrir um clube de música e entretenimento destinado à população negra local, que ainda sofria absurdamente a resistência em ambientes de lazer. A temática do filme acompanha o movimento sonoro em que vários artistas, entre os quais, o rapper, cantor e compositor brasileiro Baco Exu do Blues. Ele cultiva o gênero musical como uma forma de resistência no seu disco “Bluesman”.
A cena central do filme envolve o jovem Sammie Moore (Miles Caton), que, ao tocar no clube dos irmãos, cria um transe coletivo que funde blues, hip hop, tambores e interpretações religiosas, num plano‑sequência mágico que desloca passado, presente e futuro. Essa cena, segundo o diretor Coogler, busca provocar uma experiência quase extracorporal no espectador.
O compositor Ludwig Göransson, vencedor do Oscar, conduziu uma imersão sonora profunda: visitas a Clarksdale, Indianola e Memphis, workshops com músicos tradicionais e gravações em estúdio com artistas como Buddy Guy, Brittany Howard, Raphael Saadiq, Christone “Kingfish” Ingram e Cedric Burnside. A trilha sonora, lançada em 18 de abril de 2025 pela Sony Masterworks, conta com 22 faixas, incluindo clássicos de Buddy Guy e composições originais de Rod Wave e James Blake.
A simbologia do blues no filme vai além da estética musical: os vampiros representam o racismo estrutural e o apagamento cultural, enquanto o blues age como contraponto espiritual, ancestral e comunitário, capaz de unir e curar um contexto opressivo.
É nesse ponto que o filme mergulha em uma de suas maiores potências simbólicas: a releitura da lenda de Robert Johnson. No imaginário popular, Johnson teria vendido a alma ao diabo numa encruzilhada em troca de se tornar um mestre da guitarra, lenda que por décadas foi usada para explicar a genialidade do músico e que, ao mesmo tempo, escancara um racismo enraizado: a crença de que artistas negros só poderiam atingir níveis extraordinários de talento por intervenção sobrenatural (normalmente maligna), e não por estudo, prática e genialidade própria.
Em “Pecadores”, essa lógica é subvertida. Em vez de vender sua alma, o jovem Sammie — inspirado em Robert Johnson — é justamente o alvo de forças mágicas, vampiros, liderados por um homem branco, desejam o dom musical do garoto. A genialidade dele é tão potente que seres do outro mundo querem se alimentar dela e explorá-la. Coogler inverte a fábula: não há pacto, mas sim assédio e desejo de roubo. É uma crítica contundente à forma como o talento negro é constantemente apropriado ou desacreditado, como se fosse impossível um jovem negro simplesmente ser bom no que faz.
Essa reinterpretação da lenda de Johnson, feita décadas após sua consolidação no imaginário popular, mostra como o filme trata de um tema atual. Ainda hoje, em diferentes linguagens, artistas negros seguem respondendo ao apagamento histórico, à desconfiança sobre sua genialidade e à tentativa de diluição de suas contribuições culturais. A participação de Buddy Guy (um dos maiores guitarristas e cantores de blues dos Estados Unidos), em cena pós-créditos, interpretando um Sammie já idoso em Chicago, reforça esse elo simbólico entre a ficção e o legado real do blues, como ponto de partida de uma linhagem musical e ancestral.
Criação sonora de Baco Exu do Blues
É exatamente esse espírito que move artistas contemporâneos a resgatar o blues como raiz, matriz e resistência. Muitos cantores negros têm explorado esse elo entre o blues e outras vertentes musicais, mesclando-o ao rap, ao funk, ao jazz, ao soul, como continuidade viva, moldada pelas urgências e potências de hoje. Entre esses artistas, o baiano Baco Exu do Blues se destaca.
As obras de Baco são parte de um projeto artístico mais amplo e visceral. Baco Exu do Blues, nome artístico de Diogo Moncorvo, é um dos artistas mais expressivos da nova geração da música brasileira. Sua obra é marcada pela fusão de gêneros, pela estética provocadora e pelo compromisso em recontar a história do povo preto a partir de sua própria voz. No disco “Bluesman”, ele resgata a figura mítica do bluesman norte-americano e a transforma em um símbolo de poder, de ruptura e de reapropriação. Sua presença no cenário musical é como uma continuação daquilo que “Pecadores” propõe: afirmar que o talento preto não é milagre nem maldição, é identidade e herança.
Em “Bluesman”, faixa-título do disco lançado em 2018, Baco declara:
“Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues
É isso, entenda
Jesus é blues”

Capa do Álbum “Bluesman” de Baco Exu do Blues
Ao afirmar que tudo é blues, Baco amplia os contornos do gênero e reinscreve a história da música negra como uma trajetória de poder. A letra ecoa o mesmo enfrentamento que vemos no filme: o questionamento sobre porque, historicamente, quando o talento vem de um corpo negro, precisa ser atribuído a um pacto com o além, como se a excelência não pudesse ser natural, humana, negra.
Baco constrói um discurso sobre o blues como impulso primordial de liberdade: um ritmo capaz, segundo ele, de ressignificar o corpo negro e criar um novo espaço de riqueza e poder simbólico, antes estigmatizado e demonizado nas mãos negras, mas humanizado e aceito quando apropriado pelos brancos.
Ele afirma que queria “fazer um disco de blues sem usar o gênero musical blues”, construindo por meio da voz, de samples como o de “Mannish Boy” de Muddy Waters, e de colaborações com artistas como Tim Bernardes, Tuyo, 1LUM3 e Bibi Caetano, uma poética sonora que refletisse o espírito do blues, não sua forma tradicional.
Ainda que o blues seja fundamentalmente uma criação afro-americana, no Brasil o reconhecimento público como “principal artista de blues” recaiu, ironicamente, sobre o guitarrista branco André Christovam, que tem mais de 29 anos de carreira, fenômeno que levanta questões sobre representatividade e visibilidade dos artistas negros no país.
Cantores negros contemporâneos que perpetuam o blues vivo
Inspirado pelo filme e pela perspectiva poética do álbum de Baco, seguem artistas negros contemporâneos que mantêm acesa a chama do blues e suas ramificações:
- Christone “Kingfish” Ingram, do Mississippi, é considerado um dos mais brilhantes guitarristas da nova geração do Delta blues, herdeiro direto de Junior Kimbrough e R.L. Burnside, com técnica visceral e autenticidade emocional.
- Buddy Guy, lenda viva que aparece em “Pecadores”, atua não só como ícone performático, mas também como símbolo da continuidade do blues como narrativa de dor e superação.
- Brittany Howard, do Alabama Shakes, transita entre blues, soul e rock com força ancestral e presença marcante.
- Raphael Saadiq, produtor e colaborador do filme, transita com fluidez entre R&B, soul e elementos de blues moderno.
- Rod Wave interpreta a faixa-título da trilha sonora de “Pecadores”, mesclando melodia atual com espírito do blues ancestral.
- Shemekia Copeland mantém viva a tradição com uma voz potente e letras que falam sobre injustiça racial, orgulho negro e espiritualidade.

Cantor e guitarrista Buddy Guy na solenidade de pré-estreia do Filme “Pecadores”
Esses artistas atualizam o blues como ferramenta de empoderamento, criatividade e consciência histórica, compromisso espiritual e cultural tão presente quanto nas cenas de “Pecadores” ou na poética urbana de Baco.
Então, se “Pecadores” representa o blues como ritual ancestral que salva, transforma e conecta gerações de corpos negros, “Bluesman” de Baco Exu do Blues simboliza poeticamente essa mesma energia reimaginada nas ruas de Salvador, com versos agudos, voz rouca e uma interpretação visceral de liberdade. Juntos, ambos os trabalhos reafirmam a arte negra como espaço de resistência, disputa simbólica e renovação cultural.
O certo é que o blues não está parado no tempo: pulsa em vozes negras contemporâneas que continuam o legado. É música, é política, é ancestralidade e religião em movimento — pois, como diz Baco, Jesus também é blues.
Ficha Técnica do filme
Título: “Pecadores” (“Sinners”, 2025)
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole
Produção: Marvel Studios / Coogler Films
Elenco principal: Michael B. Jordan (Stack e Smoke Moore), Miles Caton (Sammie Moore), Danielle Deadwyler, Delroy Lindo, Ayo Edebiri, Glenn Plummer, Buddy Guy (participação especial)
Fotografia: Autumn Durald Arkapaw
Montagem: Michael P. Shawver
Trilha sonora original: Ludwig Göransson
Lançamento: 3 de abril de 2025
Duração: 129 minutos
Gênero: Terror, Drama, Musical
Idioma: Inglês
Distribuição: Warner Bros. Pictures
Ficha Técnica do Álbum “Bluesman”
Artista: Baco Exu do Blues
Título: “Bluesman”
Lançamento: 23 de novembro de 2018
Gênero: Hip-Hop/Rap
Duração: 30 minutos
Formato: Digital (streaming e download)
Gravadora: EAEO Records
Produção: Baco Exu do Blues, DKVPZ, KLZ, Portugal
Participações especiais: Tim Bernardes, Bibi Caetano, 1LUM3 e Tuyo
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