Relatos e experiências de duas professoras da Universidade Federal de Pelotas trazem reflexões importantes sobre os desafios, a cultura dos povos nativos e o cinema produzido por eles
Por Vanessa Oliveira
Vivências com o cinema indígena foram o tema da aula aberta, no dia 26 de junho, no Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Duas professoras do curso de Cinema da UFPel, contaram suas experiências no cinema documentário e na pesquisa. A professora Cíntia Langie visitou aldeias indígenas na Amazônia como documentarista e, de outro lado, a professora Ivonete Pinto foi à Inglaterra como pesquisadora visitante, na Universidade de Leeds, estudar sobre a importância do cinema indígena no Brasil e outros países. A professora Cíntia relata a sua experiência como documentarista na Amazônia e Ivonete sobre as suas pesquisa com o cinema dos povos nativos.

Professora Cíntia Langie trabalhou com filmagens 27 dias na Floresta Amazônica
Cíntia foi convidada para participar do projeto mae mekea, iniciativa que tem como objetivo de pesquisa co-projetar ações e políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas com base nas formas de viver e valores das comunidades indígenas da Amazônia. A proposta adota metodologias descolonizadoras, com foco no pluralismo ontológico indígena frente às mudanças ambientais globais no Bioma Amazônia. Quatro etnias indígenas (Yawanawa, Noke Koi Katukina, Shanenawa, Huni Kuin) de seis comunidades amazônicas co-projetam a metodologia. O trabalho se desenvolve em quatro partes ao longo de 18 meses, incluindo a ida para a Amazônia, onde Cintia foi como documentarista.
Foram 27 dias no Acre, em seis aldeias de quatro etnias diferentes, o suficiente para Cíntia obter experiências e um olhar sensível sobre aquelas comunidades. “É um universo tão lindo, tão rico, tão amplo que eu não sabia como chegar lá e eu ficava o tempo todo pensando em como não ser invasiva e como respeitá-los”, disse a professora.
Cintia falou das dificuldades que encontrou ao visitar as aldeias, eram poucos os dias em que ficavam em cada uma delas. Então, o contato era pouco, tinha apenas duas pessoas para as filmagens e também houve dificuldades ao enfrentar o clima. Era um calor muito intenso e ela ficava exposta ao sol trabalhando na filmagem. A professora relata que o clima mudava repentinamente, o sol brilhava intensamente, mas logo era substituído por uma chuva muito forte e, em seguida, o sol retornava. Os equipamentos eram posicionados diretamente no chão — uma realidade bem diferente para quem está acostumado a trabalhar e colocar os equipamentos em cima de uma mesa. O escritório dela, agora, era a própria mata, o que exigia cuidado redobrado no manuseio e na proteção dos materiais.

Cineastas tiveram contato com o modo de viver integrado à floresta
A equipe que foi em busca de uma solução para as mudanças climáticas ouviu apenas pedidos de socorro e desespero. “Eles não têm que dar solução, não foram eles que causaram tudo isso, o mínimo que devemos fazer é defender a demarcação de terras deles, e deixar eles fazendo o que já faziam há muito tempo. Nós fomos lá e ouvimos por que a vida deles não dá mais certo,” explicou Cintia.
Demarcação das terras indígenas
A demarcação das terras indígenas refere-se à garantia dos direitos territoriais dos indígenas, estabelecendo limites de suas terras a fim de garantir a sua identidade. Essa demarcação é prevista por lei, assegurada pela constituição federal de 1988. Além disso, segundo pesquisas feitas pela Rights and Resources Initiative, juntamente a Woods Hole Research Center e o World Resources Institute: as terras indígenas contribuem para a diminuição do efeito estufa, visto que diminui o desmatamento, impactando, assim, positivamente ao meio ambiente.
A professora Cíntia relatou sobre as dificuldades que as comunidades vivem, como os problemas com a alimentação. Por ser baseado no plantio, muitas vezes o alimento sai podre por conta do calor na terra e a caça não é mais possível por conta dos desmatamentos. E o que resta a essas comunidades é a resistência.
“O sistema deles não é exploratório, eles não destroem todas as árvores para poder plantar mais, para crescer mais e lucrar mais, eles colhem o que necessitam para comer no dia a dia e quando pegam seu alimento, não é individual, é para comunidade inteira. Então, essa ideia que eles têm de comunidade, de reflorestamento e de cuidado é o que nós temos que trazer para a sua preservação”, analisou a professora.
Para se deslocarem de uma aldeia para outra, Cintia conta que iam com barquinhos muito pequenos chamados de “voadeiras” e no primeiro dia a professora ficou em uma casa parecida com uma cabana. Não tinha janelas e nem portas, só dava pra pendurar a rede na parede para dormir. “Nós temos uma imagem dos povos indígenas que é muito colonizada e não é essa a lógica, a lógica é o sentido de vida que eles dão a isso, eles plantam, colhem, caçam, mas fazem isso para [a manutenção] deles e isso não destrói, o que destrói é a ganância”.
A professora ficou os 27 dias comendo da dieta das comunidades e até pensou que poderia passar mal, o que não aconteceu. Ela explicou que, nas comunidades, não era comum ter o açúcar, algumas tinham, mas isso não fazia parte do seu cotidiano, o sal também era muito pouco e nada de produtos industrializados.
“O projeto comprou barrinhas de proteína se caso faltasse para nós, que não estamos acostumados, e as crianças começaram a comer e gostaram, aí, eu pensei meu Deus, estamos estragando essas crianças (risos)”, contou.
A professora relatou que a experiência foi ao mesmo tempo incrível e chocante. Por meio das imagens captadas com o drone, era possível ver claramente a diferença entre uma terra indígena e uma área vizinha explorada por fazendeiros. Enquanto o território indígena permanecia preservado e coberto por vegetação verde, a outra área apresentava sinais visíveis de degradação, com um tipo de vegetação totalmente diferente, reflexo do uso exploratório da terra.
Um aspecto triste é que a equipe não poderá dar a eles o que mais precisam, que são as mudanças das políticas ambientais, então o objetivo de Cíntia agora é devolver a eles todos os depoimentos na íntegra para que possam divulgar nas escolas ou guardar como documentos de pesquisa. “É um histórico brasileiro de só explorar, só destruir, vai lá, explora o que é bom deles e vai embora e nós vamos ser mais um projeto que vai fazer isso. Infelizmente.”

Professora Ivonete Pinto participou de intercâmbio de pesquisadores que se voltam ao cinema indígena
O cinema produzido por povos indígenas
Na aula aberta do Centro de Artes, a professora Ivonete Pinto contou sobre sua experiência como pesquisadora na Universidade de Leeds, uma das maiores instituições da Inglaterra. A ida da professora foi motivada pelo interesse no Centro de Estudos de World Cinema, dedicado à pesquisa de cinemas periféricos, tema que também é foco de sua atuação na UFPel. Ela já mantinha uma relação acadêmica de longa data com a coordenadora do centro, que escreveu o prefácio do seu livro “Cinemas Periféricos – estéticas e contextos não hegemônicos” e participou de outras publicações organizadas por Ivonete. Foi sob sua orientação que participou do programa Visiting Research Fellow (Pesquisador Visitante). Segundo a professora, além da parceria acadêmica, a escolha pela instituição também se deu pela excelência de sua biblioteca, que oferece acesso ao acervo de universidades como Oxford.
A professora estudou sobre o cinema indígena de quatro países: Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Brasil. Ela contou que o critério se deu por serem países que passaram por processos de colonização europeia, como o Brasil, e explica que os indígenas de outras partes do mundo ainda enfrentam lutas sobre demarcação de terras, só que num estágio bem mais avançado de conquistas.
Entre os principais desafios enfrentados durante sua pesquisa, a professora Ivonete destaca as limitações de acesso ao acervo bibliográfico no Brasil. “O maior desafio é voltar e não ter acesso a certos textos. Nossa biblioteca não tem os mesmos convênios que eles têm lá fora”, relata. Outro obstáculo apontado é a dificuldade em encontrar informações consolidadas sobre a trajetória dos filmes brasileiros.
Ela também reforça a importância do ambiente acadêmico no exterior, especialmente em centros como a Universidade de Leeds, que reúnem pesquisadores de diferentes partes do mundo. “Ter acesso a bibliografias atualizadas, estudar em bibliotecas ricas e silenciosas, assistir a palestras e trocar ideias com outros pesquisadores faz toda a diferença”, afirma. Durante sua passagem pela universidade, teve contato com professores e alunos de países como China, Índia, Rússia, Turquia e Coreia do Sul, o que ampliou ainda mais seus horizontes de pesquisa.
Arte no Sul – Como surgiu seu interesse pelo cinema indigena?
Ivonete – Eu dou uma disciplina no curso de Cinema e Audiovisual da UFPel chamada História do Cinema Brasileiro. Nela, uma das aulas é sobre cinema indígena. E como desenvolvo pesquisa sobre cinemas periféricos, entendo o cinema indígena como periférico dentro do periférico, pois se o cinema brasileiro é periférico, o indígena é ainda mais. Isto em termos de produção (crescente, mas ainda pequena) e de circulação (os filmes são exibidos apenas em festivais e mostras segmentadas).
Arte no Sul – A experiência no Reino Unido mudou de alguma forma o seu olhar sobre o cinema indígena brasileiro?
Ivonete – Sim, porque passei a entendê-lo como dentro de um processo histórico. As conquistas que eles já tiveram lá, ainda vão chegar aqui. Claro que tudo depende dos governos, de quem faz as leis. A demarcação de terras, o marco legal é uma questão que já teve avanços por aqui, mas também retrocessos. Termos uma ministra indígena é um passo adiante, porém os fazendeiros, o garimpo, etc, continuam sendo os inimigos dos indígenas. E esta é uma questão prioritária, por isso, a produção de filmes em longa-metragem e com circulação maior, acaba ficando em segundo plano. Mas é importante, pois traz identidade, preserva a cultura, reafirma uma sabedoria milenar que os não indígenas precisam conhecer.
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