Longa-metragem oferece uma experiência estimulante ao questionar a busca pela verdade no cinema
Por Murilo Schurt Alves

Gravado no Teatro Glauce Rocha, ambiente cria espaço intimista entre documentarista e documentado
Um anúncio de jornal onde se lê, com letras garrafais, a palavra “convite”. Logo abaixo, um pedido: “se você é uma mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos”. Neste contexto, em um cenário minimalista, no palco do teatro carioca Glauce Rocha, “Jogo de Cena” (2007 – disponível na Netflix) nos convida a ouvir mulheres que falam de maternidade, da relação com seus pais e maridos, e demais histórias que envolvem o universo feminino. Contudo, não é só isso.
E se essas histórias íntimas, contadas de maneira tão visceral, não fossem, na verdade, completamente reais? E se os depoimentos não pertencessem, de fato, a quem os apresenta? Ao convidar atrizes, conhecidas e desconhecidas do grande público, para interpretar as histórias reais relatadas por mulheres anônimas, o diretor Eduardo Coutinho questiona os limites da verdade e nos convida para discutir a linha tênue que separa o documentário da ficção. Aqui, o próprio gênero cinematográfico ao qual Coutinho dedicou a sua carreira é colocado em debate.
O documentário revela sua proposta aos poucos. Inicialmente, parece seguir uma estrutura linear de conversas: a primeira convidada fala sobre o seu sonho de ser atriz desde a infância; a segunda, sobre um relacionamento que não deu certo. No entanto, essa segunda conversa é cortada abruptamente. A atriz Andréa Beltrão repete a última frase pronunciada pela convidada anterior e continua a sua história, interpretando-a com os mesmos trejeitos. Depoimento real e sua recriação ficcional começam a se intercalar, despertando a suspeita de que algumas histórias não são, de fato, experiências vividas por seus narradores.
Não para por aí, Coutinho vai além. A próxima personagem se identifica como babá e divide, de forma autêntica, um encontro casual que resultou no nascimento de sua filha. A construção da cena leva o espectador a acreditar que se trata de mais uma mulher anônima. Entretanto, ao final de seu depoimento, a personagem desvia o olhar do diretor e sentencia diretamente para a câmara: “Foi isso que ela disse”. Em outro momento, duas outras personagens surgem apenas uma vez, sem que suas falas sejam interpretadas por outra mulher. Uma delas declara, desde o início, ser atriz, contando uma história aparentemente pessoal. Quem fala a verdade? Quem está encenando? Será que precisamos diferenciá-las? Nesta altura do campeonato, o importante são as histórias e não a quem elas pertencem.

Coutinho convida atrizes consagradas, a exemplo de Fernanda Torres, para interpretar relatos de mulheres desconhecidas (Fotos: Matizar Filmes / Divulgação)
Além disso, a montagem alterna as histórias com momentos quando as atrizes consagradas discutem sobre a própria capacidade interpretativa. Em um dos trechos mais marcantes, a atriz Fernanda Torres expressa sua dificuldade em atuar por meio dos gestos e expressões da própria personagem, tornando-se impossível distinguir quando ela sai do papel e quando permanece nele. Ainda neste momento com Torres, a atriz desabafa para o diretor: “Parece que eu estou mentindo para você. […] Quando a origem é a ficção, é muito mais fácil”.
Afinal, o que é realidade e o que é ficção? Ao longo do documentário, enquadramentos tornam visíveis parte da estrutura de produção: fios soltos pelo chão, spots de luz, aparelhos de filmagem e a presença da equipe técnica. Diante de uma câmera ligada, na frente de outras pessoas, estas mulheres, inclusive as anônimas, não assumem um papel? E nos dias de hoje, quando publicamos fotos e posicionamentos nas redes sociais, não estamos construindo uma persona? Em “Jogo de Cena” — e na vida real —, não há uma verdade absoluta, mas sim suas representações.
Cabe destacar que Coutinho adotou um modo de documentar no qual o diálogo se tornou parte central da narrativa, principalmente a partir do final do século passado. O diretor se distanciou da impessoalidade e buscou, na oportunidade do encontro e da conversa olho no olho, a transformação da pessoa em personagem. Obras como “Santo forte” (1999) e “Edifício Master” (2002) já demonstravam que a força do relato podia ser mais envolvente do que a busca pela verdade objetiva ou factual. Em “Jogo de Cena”, isso se potencializa com as atrizes em tela. Na relação dialética entre realidade e interpretação, Coutinho nos deixa apenas com as dúvidas — que, convenhamos, são muito mais interessantes do que as certezas.
Ficha técnica
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Raquel Freire Zanfrandi, Bia Almeida
Roteiro: Eduardo Coutinho
Fotografia: Jacques Cheuiche
Montagem: Jordana Berg
Direção de arte: Rosa Verçosa
Elenco: Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres, Aleta Gomes Vieira, Claudiléa Cerqueira de Lemos, Débora Almeida, Gisele Alves Moura, Jeckie Brown, Lana Guelero, Maria de Fátima Barbosa, Marina D’Elia, Mary Sheila, Sarita Houli Brumer
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