Elenco é composto quase inteiramente por alunos com deficiência e neurodivergentes do IFSUL de Pelotas
Por Luís Esteves Garcez
Na tarde de quarta-feira, dia 27 de novembro, estive no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul) de Pelotas, para assistir a primeira apresentação da peça “Além da Visibilidade”, realizada por alunos e funcionários do estabelecimento. Abordando os assuntos de acessibilidade em instituições de ensino e capacitismo institucional, os atores, todos com alguma deficiência ou neurodivergência (com exceção da diretora da peça, que também atuou), retrataram o primeiro dia de aula de uma turma com diversos alunos com necessidades especiais no IFSul.
Tendo chegado ao local mais ou menos uma hora antes da peça começar, pude assistir o último ensaio, quando observei uma situação ironicamente metalinguística. Na metade da peça, os atores encenam o primeiro contato deles com o alarme do IFSul. Na peça, o som do alarme é retratado pelo grito de uma das atrizes. Esse grito causa uma crise de pânico na sua colega deficiente visual, com sensibilidade auditiva, e ela precisa ser acalmada pelos colegas.
Durante o ensaio que assisti, esse alarme tocou três vezes, em menos de meia hora, e por mais que o grito de Rafaela Oleiro tenha sido estridente durante sua atuação na peça, voz humana alguma poderia atingir a intensidade assustadora do alarme do IFSul. Além de alto, é exageradamente longo. Nesses três momentos que o alarme soou, eu pude ver como ele realmente afeta aqueles atores com deficiência “fora do palco”, e assistir a overdose sensorial que ele causou em alguns daqueles alunos fez com que a cena que representou isso na peça tivesse uma carga emocional a mais para mim.
Além do problema do alarme, a falta de piso tátil em todo o campus também é criticada na peça, em uma cena que demonstra a dificuldade que um cego enfrenta quando aquele piso que ele está usando para se guiar simplesmente acaba. Imagine que você está caminhando e, em certo ponto do trajeto, o chão termina e dá lugar para um abismo infinito. Suponho que o sentimento seja parecido. A postura de professores sem devido treinamento e empatia para lidar com alunos especiais também é representada, e esse talvez seja o pior dos problemas, e o mais difícil de solucionar. Um alarme pode ser trocado em um dia, pisos especiais podem ser instalados em questão de semanas, mas treinar todo um corpo docente para não só interagir. como ensinar pessoas com diversas deficiências, é uma tarefa árdua que não depende só da direção, mas também do profissional.
A diretora de “Além da Visibilidade”, Patrícia Montone, além de dirigir e atuar na peça, também é psicopedagoga e faz assistência no IFSul para alunos com deficiência auditiva e visual. Ela entrou para o time do IFSul há apenas cinco meses, mas trabalhou durante 13 anos com crianças com deficiência. Após a peça, me encontrei com Patrícia, ela me contou que, nesses cinco meses lá dentro, apesar do IFSul de Pelotas ter uma demanda grande para inclusão e acessibilidade e fazer o possível para atender as necessidades especiais dos alunos, escutou de muitos alunos com necessidades especiais um relato de invisibilidade social. Os cegos e os surdos se sentem evitados pelos colegas e ignorados por alguns professores.
Com as histórias de discriminação e exclusão que ouviu, Patrícia decidiu organizar uma peça para mostrar o que os estudantes com deficiência do IFSUL passam lá dentro, em que todas as cenas foram relatos pessoais que aconteceram com os atores. Com o objetivo de questionar se a inclusão é realmente vivida pelos que precisam dela ou se ela é apenas uma teoria no nosso dia a dia. A peça, nas palavras da diretora, foi feita para que aqueles estudantes pudessem expressar o descontentamento que eles sentem com essa realidade, com a possibilidade de tocar no coração dos alunos e professores na audiência.
Patrícia montou o elenco convidando alunos que ela acreditou que pudessem retratar com emoção para o público essas experiências das pessoas com deficiência e neurodivergências. Com o trabalho de dirigir cinco alunos com diferentes deficiências (surdez, cegueira, TDAH e baixa visão) em mãos, teve receio que pudesse ser uma tarefa muito difícil, mas comenta que foi uma experiência muito fácil e que todos pegaram o roteiro muito rápido. Talvez porque todos aqueles atores não estavam “atuando” por completo, mas sim sendo eles mesmos, retratando a própria vida. A peça não tem data certa para ser encenada novamente, mas Patrícia me contou que pretende se sentar com a direção de outras instituições para a possibilidade de “Além da Visibilidade” acontecer novamente, em outras escolas e faculdades pelotenses.
Outro objetivo que a “Além da Visibilidade” teve foi homenagear a tradutora e intérprete de LIBRAS e coordenadora do Núcleo de Apoio a Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE), Tânia Madeira, com quem também tive a oportunidade de conversar. Ela me contou que achou muito importante a apresentação para aqueles alunos, para que eles fiquem mais próximos de aceitarem sua própria deficiência, pois ela acredita que se não conseguimos nos aceitar, não conseguimos nos relacionar bem com os outros e nem com o ambiente onde estamos.
Perguntei para Tânia quais os maiores desafios que ela enfrentou nesses quatro anos em que dirige o NAPNE. Ela não precisou pensar muito para me responder que é a falta de profissionais qualificados para atender esse público. O IFSul tem, hoje, 157 alunos apresentando alguma necessidade específica, mas apenas três psicopedagogos. Um número que ela considera ser insuficiente para dar conta dessa demanda da instituição.
Também citei em nossa conversa o problema do alarme, que havia ficado em minha mente após a apresentação. Tânia respondeu que ela está tentando resolver essa questão desde que ela entrou para o NAPNE, quatro anos atrás. Ela comentou que, por reclamação de professores e de alguns alunos, não podem simplesmente não ter um alarme, pois ele é importante para muitos se organizarem, o que é compreensível. O plano atual do NAPNE é se livrar do único alarme e distribuir pelas salas e corredores diversos alarmes menos abrasivos, de menos intensidade, mas ainda não há data para essa mudança, pois é algo que depende de uma verba que a instituição não pode disponibilizar nesse momento.
Também conversamos sobre o piso tátil, e Tânia comentou que eles priorizaram a instalação dele em áreas onde alunos cegos têm aula e também nas áreas de acesso comum. Mas, pela instituição ser muito grande, atualmente é impossível colocá-lo em todos os corredores dos três andares, também por falta de verba. Ela também cita o que ela considera ser uma falha enorme de engenharia, que no segundo piso há uma entrada com acessibilidade para a biblioteca, onde não há piso tátil. Apesar desses problemas, Tânia admira a direção geral do IFSUL pelo acolhimento que ela provém ao NAPNE e pela facilidade de comunicação que os dois núcleos têm, e entende que muitos problemas não podem ser resolvidos só na base do “querer”.
Consegui trocar algumas palavras com uma das atrizes da peça, Rafaela Oleiro, estudante de Licenciatura em Computação que hoje cursa o quinto semestre e espera se formar em um ano e meio. Rafaela foi diagnosticada com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em 2020, mas vive com ele desde a infância. Ela tem uma longa história dentro do IFSul de Pelotas, já que cursou parte de seu ensino médio no curso de Eletrotécnica da instituição, entretanto, ela comenta que, na época, as coisas lá eram muito diferentes. Em 2016, quando botou os pés lá pela primeira vez, não existia na escola nenhuma psicopedagoga que pudesse perceber o problema que a adolescente sequer sabia que tinha. Ela comentou também que eram raros os professores que tentavam compreender as diferenças dos alunos, e os que faziam, faziam por conta própria, já que não havia estímulo da direção para tal. Enquanto isso, a maioria dos professores não tinha noção do que fazer com alguém diferente em sala de aula. A atriz me contou que, atualmente, no início de todo semestre letivo, todos os professores de seu curso fazem uma reunião com os psicopedagogos do IFSUL para conversar sobre os alunos especiais, e que a experiência dela lá dentro hoje em dia é muito melhor do que era na época do ensino médio.
“Tenho muito orgulho do lugar onde eu estudo, dá para ver quanto ele evoluiu em pouco tempo. Tenho orgulho do curso que eu faço, porque as pessoas lá são interessadas em inserir os alunos. O professor Álvaro Freitas de Lógica de Programação, por exemplo, repensou toda a cadeira dele para que ela se adequasse a um aluno cego e ele pudesse aprender aquilo com a mesma facilidade dos outros. ” Citou ela, alegre. Também afirmou para mim que Tânia Madeira mereceu aquela homenagem, porque ela está por trás de todas essas mudanças positivas que aconteceram nesses últimos anos, e que, nas palavras de Rafaela, ela é a “manda-chuva” que está por trás de todas essas pessoas com necessidades especiais, e é ela que vai para a luta por eles.
“Eu senti que a peça foi especial, gostei de poder ser eu mesma e poder me expressar da maneira que eu sou. Me senti vista por meu problema ter sido mostrado lá. Me senti representada, por mim mesma, mas me senti.” – Rafaela Oleiro
O Brasil possui um sistema estudantil que hoje se esforça para ser aberto a todos, indiferente das necessidades especiais dos estudantes. Nosso sistema de cotas em vestibulares equilibra as chances dos cidadãos, garantindo que todos tenham oportunidades muito mais parecidas do que seriam sem esse sistema. O problema é essa facilidade da introdução ao aluno deficiente à instituição de ensino raramente vem junto de um acompanhamento especial a esse aluno durante sua jornada no mundo acadêmico. Não adianta diminuir a barreira de entrada se a barreira de permanência não for alterada, moldada de forma que esse aluno não sinta que todo dia de aula seja uma batalha impossível. Esse sistema, a longo prazo, não é eficiente, ele só mascara o problema, fazendo parecer que a educação brasileira é acessível a todos, quando na verdade, apenas 5% das pessoas com deficiência no Brasil terminaram o ensino superior.
Dados coletados pela Pesquisa Nacional de Saúde de 2021, realizada pelo IBGE, constam que temos pelo menos 17,3 milhões de pessoas com alguma deficiência no País. O sistema de cotas foi um grande passo à frente para prover oportunidades para essas pessoas, mas não é suficiente, especialmente quando nos referimos a alunos que não conseguem enxergar ou escutar, ou que possuem alguma dificuldade cognitiva ou motora. “Além da Visibilidade” crítica de forma leve e bem-humorada a falta de sentido em colocar esses estudantes nas instituições e larga-los lá dentro sem qualquer medida de acompanhamento que torne acessível para que eles, além de entrar, consigam sair de lá com um diploma na mão.
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