A Cena Drag em Pelotas: muito além da Parada da Diversidade

A 23ª Edição do Dia do Orgulho LGBTQIAPN+ ocorreu no dia 24 de novembro na cidade        

Por Larissa Rodrigues   

  

Gloria Crystal foi a convidada especial porto-alegrense que prestigiou o evento em Pelotas

 

No brilho das luzes e no som vibrante das ruas, a 23ª edição da Parada da Diversidade de Pelotas, realizada no dia  24 de novembro, reuniu milhares de pessoas para celebrar e reivindicar direitos. O evento é mais do que um desfile; é um palco para as vozes que, muitas vezes, permanecem silenciadas, reforçando a importância da luta LGBTQIAPN+ para a sociedade e para aqueles que ainda não compreendem o tamanho da sua magnitude.

Com uma programação diversificada, a Parada contou com apresentações artísticas que incluíram shows, DJs locais e performances marcantes. Entre os destaques, estiveram as performances de Glória Crystal e das drag queens Anahí, Camilla Duarte, Lolla Hills, Lorena Drag, Maddivah, Miss Yan Future, Myah, Sá Biá e Sawanah, que transformaram o espaço em uma celebração vibrante de arte e resistência.

 A história das drag queens é rica e remonta a séculos, sendo marcada por contextos culturais, artísticos e políticos em diferentes partes do mundo. Desde que o mundo é visto como mundo, pessoas que performam a diversidade sexual seguem lutando e quebrando os paradigmas.

Desde a Grécia Antiga, quando o teatro surgiu, até o tradicional Kabuki japonês, os papeis femininos sempre foram interpretados por homens, tendo em vista que as mulheres eram proibidas de subir e se apresentar nos palcos de teatros. Hoje, depois de anos, com a arte drag reinventada e cheia de novas possibilidades e oportunidades, isso mudou. As performances femininas transcendem barreiras culturais e se afirmam como uma expressão de identidade, liberdade e resistência.      

Para muitos, a arte drag é vista com desconfiança, descriminalização ou, muitas vezes, reduzida a uma performance sem profundidade, ignorando a rica história cultural que estes artistas carregam há anos e as barreiras que precisam enfrentar dia após dia. Desde o início de sua vida, com a rejeição familiar, até a discriminação nos espaços públicos, ser uma drag em um país marcado por altos índices de violência contra a população LGBTQIAPN+ é um ato de coragem, de ser diferente e ser quem quiser ser.     

A presença de drag queens e travestis em eventos como a Parada é um lembrete de que o preconceito ainda pode ser combatido por meio da arte. Cada salto, maquiagem elaborada, cabelo e roupa carregam um significado que transcende o palco: a expressão de uma identidade que se recusa a ser silenciada.         

Embora os desafios sejam muitos e contínuos, a arte drag tem inspirado mudanças positivas. Sua popularização em plataformas digitais e programas de televisão contribui para desconstruir estereótipos, educar o público e trazer mais representatividade para uma parcela da sociedade que historicamente foi marginalizada.

Entre as apresentações da 23ª Parada da Diversidade de Pelotas estiveram as performances de Anahí e Myah, duas drag queens que encantaram o público com suas produções elaboradas e a energia contagiante que levaram ao palco. Mais do que artistas, elas representam a luta diária de tantas pessoas LGBTQIAPN+ por aceitação, respeito, e espaço em uma sociedade que ainda carrega preconceitos.

 

Anahí inclui seu trabalho artístico na defesa pela liberdade  Foto: Juliano Xavier Tavares

 

Contribuição da arte drag na luta pelos direitos

Em entrevistas, Anahí e Myah compartilharam suas perspectivas sobre a arte drag, os desafios enfrentados e a importância de espaços como a Parada para a comunidade LGBTQIAPN+.

Como a contribuição da arte drag na luta pelos direitos LGBTQIAPN+, Anahí percebe essa expressão artística como uma base fundamental. “Quando a gente rompe com as expectativas sobre o que é ‘masculino’ ou ‘feminino’, o drag questiona construções sociais e promove a liberdade de ser”, diz.

Myah compreende que a arte drag funciona na quebra de padrões que a sociedade impõe. “Ao mesmo tempo que vivo sendo um homem cis, pratico uma arte na qual faço tudo o que me diziam que eu não deveria fazer: colocar maquiagem, usar perucas, calçar salto alto, vestir roupas femininas”, descreve. “Quando nascemos sendo homens cis, há toda essa masculinidade imposta para nós, que precisamos seguir, e isso vai oprimindo uma alma genuína que temos”, pensa.

Para esta performer, “a arte drag surge como uma expressão dos nossos sentimentos, algo que somos forçados a oprimir durante a vida inteira”. Então, quando decide-se fazer drag, abre-se mão de todas essas correntes que prendem e segue-se o que é a sua própria essência. “É uma forma de expressão artística e uma quebra desse sistema de sociedade, onde menino deve ser isso ou aquilo. A arte drag mostra que não é assim, que qualquer um pode ser o que quiser”, defende.

 

Glória Crystal contribuiu para a animar o público pelotense no dia 24 de novembro

 

O cenário drag em Pelotas

Anahí tem notado que o cenário drag em Pelotas é muito rico e diverso.  Há “top drag, drag caricata, drag com ballet”, mas ela acredita que faltam oportunidades e lugares para as drags desenvolverem e colocarem em prática as suas ideias. Para Myah, o cenário drag em Pelotas é incrível. “A gente tem vários artistas extremamente talentosos de vários nichos diferentes, cada uma com a sua especialidade”. Ela lembra que já teve o privilégio de estar junto com várias drags com ótimas performances, em diversos eventos, só que, assim como Anahí, lamenta que há pouquíssimas oportunidades.

“Eu digo isso porque eu tenho meus anos de carreira e, mesmo já tendo feito várias coisas, ainda tenho dificuldades para fechar um evento ou coisas assim aqui em Pelotas. Às vezes, é mais fácil fazer e fechar evento lá em Porto Alegre. Mas, aqui em Pelotas, é difícil, muito difícil trabalhar. O nosso público não sabe se consome artista local ou o que mais. Eu tive que tirar leite de pedra, sabe? Tive que mover montanhas”, relata Myah.

Ela achava engraçado quando ouvia pessoas falando: “Nossa, eu via seus shows e pensava, nossa, ele está tentando fazer tanta coisa”.  Mas Myah sempre fez muitas coisas. “Eu queria muito fazer isso, queria fazer shows grandes. Acabou que, por eu fazer muitas coisas, eu consegui ter meu público. É exatamente isso. Eu tive de mover montanhas para chegar nesse nível de satisfação do meu trabalho hoje”, considera.

“Só que eu consigo ver que essa não é a realidade para outras drags, porque existem poucas oportunidades para nós aqui em Pelotas. É muito difícil crescer em uma cena assim, se desenvolver. Eu consegui porque criei minhas próprias oportunidades, fiz muitos eventos próprios, embora isso seja mais desgastante, estressante. Eu sempre fiz muitas coisas, mas o sistema de arte aqui em Pelotas é difícil”, avalia.

 

Anahí inspira-se nos musicais da Broadway para criar suas coreografias         Foto: Fly Camera Pelotas

 

Criando apresentações, personificações e shows

Apaixonada por teatro musical, Anahí colhe muitas das suas referências em musicais (dos teatros da Broadway, por exemplo). Transforma a sua visão dessas produções norte-americanas tendo em conta a sua própria realidade. “Também gosto bastante de usar cantoras e atrizes negras como referência na minha montagem e nas minhas performances”. Para Anahí esta batalha é constante, cada vez mais é preciso lutar para obter seus espaços.

Myah vê as suas criações sempre como parte de algum conceito, ambientação e cenário. “Storytelling, sabe? Há uma história, alguma narrativa ali. Porque eu gosto muito de criar uma performance que tenha contexto visual; assim, a pessoa fica presa, assistindo”, explica. Para ela, é o tipo de performance que sempre gostou mais. “Eu me envolvo muito. O teatro também tem muita brincadeirinha, um senso de humor meio irônico, sabe? É bem assim. Às vezes, eu digo que é ‘camp’, sabe? Uma coisa exagerada. Sim, porque ‘drag’ é isso”.

Ao lado do exagero, ele observa que também há um lado minimalista. “Às vezes, sou eu e o bailarino apenas dançando, porque eu também adoro dançar. Então, as minhas performances são muito compostas por coreografias e danças, com bailarinos também, mas basicamente isso. Eu crio a partir de um som; tenho que ver o que quero performar. Às vezes, escuto uma música, e na mesma hora já me vem toda a ideia. Ou, então, preciso misturar algo para fechar a narrativa”.

Myah se considera muito exigente, até mesmo chato, com a criação do áudio. “Para mim, o som é muito, muito importante, porque é a primeira coisa que as pessoas vão perceber quando estamos performando. Sempre fui muito crítico em tentar deixar o meu áudio coeso, com uma narrativa. Depois dessa parte de criar o áudio, eu passo várias horas escutando em loop infinito até conseguir polir todas as ideias. Tento visualizar tudo na minha cabeça primeiro; só depois começo a desenvolver a coreografia, se tiver”.

Podem fazer parte elementos tecnológicos, tipo projeção com datashow. Quando se decide por uma coreografia, tudo é gravado no seu celular e enviado para os dançarinos que podem estar disponíveis. “Depois, começamos a ensaiar e ensaiamos bastante”, destaca.

Quando precisa fazer os figurinos, Myah passa uns dois ou três dias nesse processo. Depois, é só apresentar. “Tudo é completamente artesanal. Não tem nada que não seja feito à mão no meu trabalho. Por mais que me inspire em outros figurinos, acredito que, por ser eu quem os faço, acabo, inconscientemente, mudando algo para agradar a minha visão. Acho que isso coloca meu DNA ali”, diz.

Na coreografia, também acontece algo semelhante. Ele se inspira muito nas coreografias originais, mas sempre cria uma versão alternativa ou algo original. “Não sou um coreógrafo e bailarino formado, mas, às vezes, me aventuro a coreografar”.

“É um processo lindo, incrível. Eu amo ver as apresentações tomarem vida. É como se eu tivesse tido uma premonição e trabalhado para torná-la realidade. Quando se realiza, é incrível”, exclama.

Myah avalia que desenvolveu um grupo de bailarinos extremamente talentosos, que está com ela desde 2021. “Esse grupo só cresceu, e juntos fazemos coisas cada vez mais lindas. É incrível, sabe? Trabalhar com eles torna o processo muito melhor e mais divertido. Definitivamente, muito mais divertido”, elogia.

As drag queens, com sua arte vibrante e performances carregadas de significado, são muito mais do que protagonistas nos palcos: elas são símbolos de resistência e expressão. Na 23ª Parada da Diversidade em Pelotas, sua presença reforçou a importância de lutar por um mundo onde todos possam ser quem realmente são. Entre maquiagem, figurinos e aplausos, elas trazem à tona histórias de coragem e resiliência que continuam a inspirar não apenas a comunidade LGBTQIAPN+, mas toda a sociedade. Em um cenário onde a arte se encontra com a luta por direitos, as drags nos mostram que transformar é, acima de tudo, um ato de amor e resistência.

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