Por Roger Vilela
Nova minissérie criada por Scott Frank, de “Godless”, tem mais de 60 milhões de espectadores
No fim de outubro deste ano, chegou à Netflix a produção que se tornou a minissérie roteirizada mais assistida do serviço de streaming. Em 28 dias desde sua estreia, “O Gambito da Rainha” (“The Queen’s Gambit”, no original) foi assistida por 62 milhões de usuários em todo o mundo. A produção chegou ao Top 10 em 92 países, alcançando o primeiro lugar em 63 deles.
“O Gambito da Rainha”, adaptação do livro homônimo de Walter Tevis, conta a história de Elizabeth “Beth” Harmon, interpretada por Anya Taylor-Joy, uma jovem órfã que com o seu talento conquista o “mundo” do xadrez, um esporte predominantemente masculino, entre as décadas de 1950 e 1960.
O responsável pela adaptação é o cineasta Scott Frank, que dirigiu e roteirizou os sete episódios da minissérie. Em 2017, ele criou outra fantástica produção para a Netflix, “Godless”, um drama de faroeste recheado de ação e grandes personagens. Ambas as obras funcionam como um filme de sete horas, característica que dá fluidez às tramas.
“O Gambito da Rainha” começa com a chegada de Beth Harmon, com nove anos (Isla Johnson interpreta a versão jovem da personagem), a um orfanato do Kentucky, nos EUA, após a morte de sua mãe. É nesse local que a jovem conhece duas coisas que terão grande impacto em sua vida: os tranquilizantes e o xadrez. O responsável por apresentar o jogo de tabuleiro é o zelador da instituição, Sr. Shaibel (Bill Camp). É ele que reconhece o talento natural de Beth e a incentiva a mostrá-lo ao mundo.
Outros personagens são importantes para a vida da protagonista. Alice Harmon (Chloe Pirrie), sua mãe que conhecemos por meio de flashbacks, Jolene (Moses Ingram), que também é órfã e a sua melhor amiga, Alma (Marielle Heller), sua mãe adotiva, e os enxadristas D.L. Townes (Jacob Fortune-Lloyd), Harry Beltik (Harry Melling), Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster) e Vasily Borgov (Marcin Dorociński). Há uma relação simbiótica entre eles e Beth. Há uma troca de influências (benéficas ou não), seja em suas vidas pessoais, seja no esporte que está no centro da história da minissérie.
A construção do enredo de “O Gambito da Rainha” segue uma estrutura bem conhecida: a protagonista órfã tem uma infância difícil; em um certo momento demonstra ter um dom natural para algo; com suas habilidades conquista um grande sucesso; depois de um tempo passa por turbulências e começa a se questionar; no fim, com ajuda, consegue driblar os problemas para vencer o seu maior desafio. Seguindo esse caminho, Scott Frank entrega uma produção não muito inovadora nesse quesito, mas que tem uma ótima execução.
As áreas técnicas da minissérie ajudam a dar brilho à trama. O design de produção nos transporta para meados do século passado. A fotografia utiliza magistralmente cores como o vermelho e o verde na composição das cenas. O uso da luz cria quadros lindos. A trilha sonora de Carlos Rafael Rivera é imersiva e trabalha muito bem com a edição de Michelle Tesoro.
O xadrez pode ser maçante para quem assiste, com partidas que podem durar horas. O silêncio é necessário para que os jogadores mantenham a concentração. Mas a trilha e a montagem transformam as cenas dos duelos de Beth. Eles se tornam divertidos, emocionantes ou tensos, dependendo do momento.
A minissérie também desmitifica algumas ideias, por exemplo, as visões de que o xadrez não é algo para todos e que os russos (soviéticos se levarmos em consideração o contexto da época retratada na obra) não são amigáveis.
A primeira visão tem relação com o Sr. Shaibel. Sempre que Beth dizia que foi o zelador do orfanato quem a ensinou a jogar, as pessoas ficavam surpresas. “Um zelador?”, perguntavam com um certo grau de desconfiança. Até hoje o xadrez é considerado elitista, algo que não é verdade. O que falta é mais acesso ao esporte. Com o sucesso da minissérie, a procura pelo xadrez na internet cresceu em todo o mundo. O jornal britânico The Guardian mostrou que, desde o lançamento de “O Gambito da Rainha”, o site de vendas on-line eBay registrou nos EUA um aumento de quase 215% no número de vendas de tabuleiros e acessórios de xadrez. A publicação também revelou que a Federação de Xadrez dos Estados Unidos (US Chess Federation) atingiu em meados de novembro a maior quantidade de novos membros desde o início da pandemia, incluindo muitas mulheres.
Durante a Guerra Fria (1947-1991), se criou nos EUA e nos países sob sua influência a visão de que os russos eram frios, pouco amigáveis e até sanguinários. Mas no final da minissérie, quando Beth é recebida de braços pelo povo de Moscou durante o auge das tensões entre os blocos oriental (URSS) e ocidental (EUA), essa idealização é posta em xeque.
Você pode se perguntar: por que do antagonismo russo em “O Gambito da Rainha”? Após a Revolução Russa (1917), Lenin, um aficionado pelo xadrez, passou a promover o esporte no país. A partir de 1922, com a formação da União Soviética, o Estado começou a investir na formação de enxadristas, que iniciavam a jogar ainda muito jovens. Como resultado do investimento, os jogadores soviéticos dominaram os campeonatos mundiais, tanto no masculino quanto no feminino, até 1991, quando a URSS foi dissolvida. A Rússia também é o país com o maior número de Grandes Mestres – titulação máxima do xadrez –, com 240 no total. Os Estados Unidos são o segundo, com 94. Devido a esse predomínio, era muito difícil o maior antagonista (que não significa ser vilão) de Beth não ser um russo ou de outra república soviética.
Outro assunto que a minissérie trata e que permeia o mundo do xadrez é o machismo. Como já foi dito, o esporte é predominantemente masculino. Na primeira competição oficial de Beth, antes de começar a vencer seus oponentes, ela é vista praticamente como uma intrusa por estar jogando com homens, mesmo existindo uma categoria feminina. O simples fato de existir categorias que dividem os sexos em um esporte puramente intelectual implica que haveria diferenças cognitivas entre homens e mulheres, o que é uma ideia totalmente estapafúrdia.
A minissérie não aborda apenas assuntos relativos ao xadrez. As desilusões amorosas, amadurecimento, vícios, preconceitos e o papel da mulher na sociedade também fazem parte do escopo da obra.
É unanimidade que o ponto mais forte de “O Gambito da Rainha”, além da representação fidedigna das partidas de xadrez, é a interpretação de Anya Taylor-Joy, dona de um olhar penetrante. A atriz entrega uma protagonista complexa e humana, com a qual o público não tem dificuldades em se conectar.
Anya vive um ótimo momento em sua carreira, participando de sucessos como o filme “Fragmentado”, do diretor M. Night Shyamalan, da série “Peaky Blinders”, da BBC, e de “Emma”, nova adaptação para os cinemas do romance homônimo de Jane Austen, que tem grandes chances de receber indicações para o Oscar de 2021.
Outras atuações também merecem destaque. Entre elas, a de Marielle Heller, que interpreta a mãe adotiva de Beth, e a de Thomas Brodie-Sangster, que dá vida ao enxadrista Benny Watts.
“O Gambito da Rainha” é uma obra que não fica restrita aos tabuleiros e campeonatos. Ela desnuda seus personagens, expondo vícios, aflições e desejos. Também desmascara a sociedade, questionando e revelando sua hipocrisia, ambiguidade e preconceitos. Com o sucesso que a minissérie alcançou, não será nenhuma surpresa ela ganhar uma continuação ou um derivado.
O título da minissérie
Como a palavra “gambito” se assemelha a “cambito”, sinônimo para “perna fina”, o título da produção da Netflix se tornou alvo de inúmeros memes nas redes sociais, que utilizaram até as pernas da rainha Elizabeth II para fazer piada. Enquanto “cambito” tem origem na palavra “camba”, que significava “perna” no latim vulgar, “gambito” deriva do italiano “gambetto”, que tem o sentido de rasteira. No dicionário, gambito tem o significado de artimanha ou estratagema que tem como objetivo derrotar o adversário. No xadrez, é uma abertura que consiste no sacrifício de um peão para adquirir vantagem ou causar a perda de uma peça importante ao jogador adversário.
Existem mais de um gambito no esporte. O da rainha, ou melhor, dama (como a peça é realmente chamada pelos enxadristas), é um dos mais populares. Inclusive é uma das aberturas favoritas de Beth Harmon, que combina perfeitamente com estilo de jogo da personagem que tem como característica “acabar” com adversário logo no início da partida.
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