Por Marcela Silva de Oliveira
Finalizada no mês passado, mais uma Semana Farroupilha carregada de comemorações e tradições que atravessam décadas e, no caso de Pelotas, com cada vez mais infraestrutura. É de suma importância fazermos uma reflexão, afinal, sem questionamentos não há mudança. Todos os anos, entre os dias 13 e 20 de setembro, as cidades gaúchas oferecem vasta programação, composta geralmente por palestras, espetáculos, lançamentos de livros e desfiles que lotam as ruas e os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Tudo relembra os feitos dos gaúchos no chamado “Decênio Heróico” (1835-1845). Mas o que de fato ocorreu de tão magnífico nesse período da História, do que todos nos orgulhamos tanto?
Desde pequenos, durante a segunda semana de setembro, vamos à escola vestidos de gaúcho e prenda sem muito saber o porquê. Quando maiorzinhos, aprendemos que, neste período, entre 1835 e 1845, houve uma grande revolução contra o governo imperial, encabeçada por bravos homens gaúchos que tinham ideais liberais, federalistas e republicanos. O que a escola, os jornais e muitos livros não nos contam, é que estes gaúchos arrojados, que mais tarde viraram monumentos, nomes de ruas e de cidades, eram grandes fazendeiros, donos de muitos escravos. Movidos por seus interesses financeiros, venderam, trocaram e emprestaram muitos homens, mulheres e crianças negras para financiar essa “gloriosa revolução”.
Essa foi a mais longa revolta brasileira de todos os tempos. Ao completar nove anos, em 1844, não andava mais para frente nem para trás. Era o momento quando um acordo entre as partes seria a melhor solução. Porém havia um entrave: negros escravizados foram alistados no exército dos rebeldes, sob a promessa de liberdade, na qual o Império não tinha o menor interesse. Escravos libertos, além de uma quebra econômica, representavam perigo, escravos injustiçados, também – era o famoso “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come” – a solução então, era matar o bicho (e de fato, o tratamento dado a estas pessoas não ficava muito longe disso).
Foi firmado então um acordo entre o Barão de Caxias, comandante do exército imperial e David Canabarro, chefe dos revoltosos que, conforme comprovam documentos, desarmou sua infantaria na noite de 14 de novembro de 1844 e os entregou de bandeja ao inimigo. Enquanto os infantes e o corpo de lanceiros negros dormiam, as tropas de Moringue, a mando de Caxias em acordo com Canabarro, atacaram, dizimando-os quase que cem por cento. Poucos conseguiram fugir a cavalo e, outra pequena parte foi levada escravizada ao Rio de Janeiro.
Com o tempo, essa história começou a ser recontada, sob olhares românticos que criaram em torno destes fatos uma coluna de fumaça quase que mítica. Os fazendeiros escravagistas receberam muitas homenagens e foram apresentados como heróis a várias gerações, até os dias atuais. Porém, não é preciso um grande aprofundamento bibliográfico para percebermos o quanto nossas façanhas são manchadas de sangue, mais especificamente, sangue negro.
O povo gaúcho é, como diria Nalva Aguiar, hospitaleiro, de alma nobre – o que só reforça a ideia de uma desinformação geral. Comemorar um evento histórico tão controverso, envolvendo traições e crueldade só pode ser resultado de uma construção muito sólida de um mito. É claro que não será da noite para o dia que este cenário irá mudar, mas há esperança de uma nova visão para as gerações futuras. E nós, como sociedade do século 21, que vivemos um momento eminente de desconstrução, podemos contribuir muito para que a verdade apareça cada vez mais. Como sugerido no início deste texto, é importante que façamos um exercício diário de reflexão e possamos trabalhar em nós o pensamento crítico sobre as convenções sociais que nos rodeiam.
COMENTÁRIOS
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Eduardo Rodrigues
Apesar de me considerar seguidor de tradições gaúchas, não sou alienado, conheço a história sensacionalista, falsa e mentirosa em torno a elitização da historicidade e cultura rio-grandenses. sendo assim, achei ótimo a visão trazida nesse texto, precisamos “deseroízar” alguns personagens da história do sul, que por interesse e poder, são retratados como audaciosos e vorazes, fiéis ao povo e seus ideários de justiça, no entanto, foram verdadeiros anjos da morte e traidores do seu povo.
Denilson Nogueira
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