Por Luis Fernando Rabelo Borges/Docente da UFSM (*)

Sim, o ano era 1994. E o mês era fevereiro. Após uma tentativa frustrada de passar “na sorte” no vestibular para Jornalismo na UFRGS, em janeiro, logo após terminar o 2º grau (no apagar das luzes de 1993), decidi encarar os tais cursinhos pré-vestibular, e fui fazer a matrícula em um deles. Prometi para mim mesmo que seria a primeira e última vez que eu faria cursinho, passando ou não no vestibular de 1995. Tinha um certo ranço desses cursinhos, e queria tê-los evitado, mas a incompetência da minha sorte dificultou as coisas nesse sentido. Mas, contrariando a minha má vontade inicial, a experiência em um cursinho vivenciada naquele ano acabou sendo bem bacana, e de quebra eu passei no tal vestibular do ano seguinte.

Mas isso é o que menos importa aqui. O principal estava na fila da matrícula. Do cursinho, não da faculdade. Lá estava eu na companhia dos abnegados dos meus pais, e nós três estávamos acompanhados de um dilema e de duas opções. Pagar mensalmente ou pagar o ano inteiro de uma tacada só? Meus pais eram professores, de forma que não estávamos exatamente nadando em dinheiro. Mas então que loucura é essa de pagamento anual? Acontece que loucura mesmo era a inflação da época, poucos meses antes da implementação do Plano Real.

Não lembro dos valores exatos. Não lembrava sequer a moeda de então. Nada como o Google e o Wikipédia para refrescar esta memória de meia idade e me esclarecer que estávamos em tempos de cruzeiro real, cujo nome já antecipava o real que estava por vir, não sem antes passar pelas URVs – Unidade Real de Valor, que serviu como uma espécie de transição para o Plano Real. Sendo que tivemos várias outras mudanças de moeda desde 1986, a partir da substituição do cruzeiro pelo cruzado, que foi substituído pelo cruzado novo, seguido pelo retorno do cruzeiro, que viria a ser rebatizado como o cruzeiro real então vigente. Sim, em questão de menos de 10 anos tivemos 6 moedas diferentes, tudo com o intuito de estancar a sangria da inflação, mas que só a fez sangrar ainda mais. Realmente uma loucura, não? Não é à toa que eu não lembrava da moeda. E na época ainda não tínhamos internet para rastrearmos por lembranças desse tipo.

 Pena que nem a internet me possibilita relembrar os valores exatos envolvidos no pagamento do cursinho. Aí realmente não tem jeito. Mas vamos estão partir para as suposições. Digamos que o valor anual custasse uns 12 mil (cruzeiros reais). Já o somatório das 12 mensalidades daria uns 13 ou 13,5 mil. Ou melhor, a primeira mensalidade multiplicada por 12. Não considerando os juros entre uma mensalidade e outra. E na época a inflação estava comendo solto.

Botando tudo na balança, essa foi a ponderação que fizemos e que nos levou a optar pela loucura do pagamento anual, espremendo as finanças familiares. Na nossa projeção mais pessimista e apocalíptica, imaginamos que até o final do ano a última mensalidade poderia custar quase o mesmo que o valor a ser pago pelo ano inteiro.

Iniciadas as aulas, e movido por esse misto de curiosidade inflacionária e complexo de culpa, fui acompanhando junto a colegas que optaram pelo pagamento mensal o valor da mensalidade de cada mês.

Pois bem, o Plano Real foi implementado em julho, e a mensalidade desse mês custou, vamos novamente supor, uns 12,5 mil. Isso mesmo, um valor mais elevado do que havíamos pago em fevereiro pelo ano inteiro. E estávamos na metade do ano letivo, não no final.

Sim, era nesse patamar que se encontrava a inflação antes de o Plano Real chegar para estancá-la. Graças a essa abençoada iniciativa, os meus colegas puderam seguir pagando por mês apenas um pouco mais do que o pagamento anual, nada além disso. Sim, porque, no andar da carruagem, até o final do ano estariam pagando 10 anos em uma só mensalidade.

Pois então, o fim da inflação não fez, de forma alguma, retroceder os preços que haviam aumentado de forma exorbitante nos meses anteriores. Desde a mais banal goma de mascar até mensalidades de cursos pré-vestibular, os valores simplesmente se mantiveram. E alguém aí se atreve a achar que os salários aumentaram na mesma proporção? Conclusão: em questão de meses o poder aquisitivo da população em geral desceu ladeira abaixo. E o Plano Real apenas estancou a descida. Manteve a desproporção.

Voltei a perceber isso uns 2 ou 3 anos depois, quando, já na faculdade, comecei a fazer coleções de revistas em quadrinhos brasileiras lançadas justamente no período de metamorfose de moedas, entre a segunda metade dos anos 1980 e a primeira metade dos anos 1990. Na segunda metade dos anos 1990, elas já estavam fora de catálogo e ainda não haviam virado cult. E ainda era possível encontrar em sebos, e mesmo na rua, versões usadas a preços módicos, tipo 1 ou 2 reais.

Duas delas foram publicadas bem nesse período de vésperas e início do Plano Real, e os preços originais delas dão uma boa ideia da escalada da inflação que então se vivenciava: Striptiras, do Laerte (e na época era “do” mesmo) e Casseta e Planeta, resultado da junção das revistas Casseta Popular e Planeta Diário na mesma época em que começava o programa humorístico televisivo global. Tanto a Striptiras quanto a Casseta e Planeta possuíam periodicidade “mais ou menos mensal”, tanto que nenhuma delas publicava o mês de lançamento – ainda que a Casseta ao menos publicasse o ano.

Revista Casseta e Planeta circulou de 1991 até 1995

A Striptiras durou de 1991 a 1994, em um total de 15 edições. Os valores de todas elas foram os seguintes, em ordem cronológica: 35.000, 45.000, 60.000, 85.000, 110.000, 140.000, 170 (a partir daqui já é em cruzeiros reais, daí o corte dos três zeros – não porque barateou), 200, 340, 500, 1.200, 3,20 reais (olha ele aí), 3 reais, 3 reais, 3 reais.

Já a Casseta e Planeta durou de 1992 a 1995, em um total de 25 edições, sendo as 2 primeiras em 1992 e as 5 últimas em 1995. Seguem os valores, no mesmo esquema de cronologia: 20.000, 25.000, 30.000, 35.000, 40.000, 55.000, 70.000, 90.000, 180.000, 250 (cruzeiros reais), 350, 500, 4.300 (para começar 1994 em grande estilo), 3 URVs, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3 reais, 3,50 reais, 3,50 reais, 3,50 reais.

A partir daí, fica fácil fazer mentalmente os gráficos. E fica igualmente fácil perceber o quanto os valores das revistas – e, por extensão, dos produtos de consumo de um modo geral – aumentaram sobretudo nas proximidades de implementação do Plano Real. Quadrinhos é cultura, e também economia.

E, de novo, os salários nem de longe acompanharam o aumento de preços das revistas, e o aumento foi apenas estancado, assim como foi estancada a desproporção entre custos e salários. A única diminuição que houve foi a do poder aquisitivo.

Tudo isso para dizer que a ideia de estabilidade econômica é altamente discutível. Não é tão “real” assim. E isso não é de hoje, com o aumento desenfreado dos combustíveis e de todo o resto que estamos vivenciando atualmente. O momento atual é apenas aquele que mais se aproxima daqueles gloriosos tempos de 1994. Mas, nesse intervalo de quase três décadas, periodicamente passamos por picos de aumentos de preços.

Nessas horas eu não tenho como não lembrar de outro momento de transição estudantil, no início de 2001, quando obtive a bolsa que me possibilitou cursar o mestrado em Comunicação na Unisinos e fui bebemorar sozinho em um bar nas proximidades da estação de metrô e no qual eram vendidas garrafas de 600ml de cerveja a 1 real cada. Pensem no que era possível fazer com uma simples nota de 5 reais…

(*) Luis Fernando Rabelo Borges é professor do curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação (Decom) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus Frederico Westphalen.