Poemas visuais: uma relação entre fotografia, ser humano e natureza

Raízes da árvore Sumaúma, comum na região Amazônica. Foto: Reprodução/Facebook

Por Rayane Lacerda

Fotógrafo, poeta e amante da natureza. Essas são características importantes para compreender os pilares que originam as novas percepções propostas por Araquém Alcântara. Aos 47 anos de carreira, ele é um profissional capaz de enxergar além da própria fotografia, compreendendo as entrelinhas que existem no caminho entre a natureza e o ser humano. Dessa forma, Araquém torna-se pioneiro no trabalho que desempenha, o qual define a fotografia como instrumento de consciência da relação entre o homem e o meio ambiente, capaz de apresentar diferentes portas para novas visões de mundo.

Encontrar o mundo e encontrar a si mesmo por meio da linguagem plástica foi a primeira percepção cultural compartilhada por Araquém em uma entrevista que durou cerca de 50 minutos. Nos primeiros momentos de conversa, foi possível compreender que a arte é a sua principal inspiração e que a sua capacidade de expressá-la em palavras é única: “Toda linguagem plástica, toda escolha de um caminho voltado para a arte exige uma profunda dose de obstinação, de idealismo, de perseverança e de renúncia a uma série de coisas. Você começa a se dedicar e vai percebendo que aquilo é uma poderosa arma de você encontrar o mundo e encontrar a si mesmo”, conta ele.

O fotojornalismo ambiental

Vencedor de um prêmio Jabuti com o livro “Amazônia”, a conexão de Araquém com o jornalismo ambiental é singular. As suas imagens, que trazem propriedades de denúncias ambientais e alertas sociais para as riquezas naturais em constante destruição, estão diretamente relacionadas a fotografia de caráter jornalístico. “A experiência do fotojornalismo é fundamental na minha carreira. A rapidez, a logística, a velocidade da informação, a percepção do fato. Mas, eu procuro fazer imagens atemporais, que elas estejam ligadas a sentimentos. Isso é o que eu chamo de poemas visuais”, conta ele.

Nesse contexto, Araquém percebe dois mundos diferentes inseridos na ideia de o homem ser um sujeito que dispõe da abundância do meio ambiente. O primeiro, segundo ele, retrata o profundo sentimento que alguns povos ainda mantém com a natureza: “Como dizia Franz Krapper, nós estamos provocando e promovendo um grande holocausto da natureza. Mas o povo humilde, o povo desse sertão, ele ama a natureza, porque é dela que ele depende. Até quando ele tem que andar muito para buscar água, fruto de tanta inconsciência”, refere-se ele. Em contraponto, o segundo mundo carrega uma força oposta, responsável pela crise ambiental que o planeta atravessa. “As crianças ainda dormem com fome, ainda há trabalho escravo, ainda destroem séculos de maravilhosas construções em 10 minutos. Eu me sinto pronto. A minha mente é limpa, o meu trabalho tem força e fala por si só. Agora ele se transformou numa referência na fotografia de natureza, que é a maior riqueza que esse país tem: a sua natureza. O país com a maior biodiversidade do mundo. Já estamos chegando em um ponto crítico da Amazônia, com quase 40% destruída, Cerrado mais de 50%, Mata Atlântica 93%, Mata de Araucária já praticamente toda destruída. Mas, é preciso dizer a todos os jovens que é preciso replantar esse grande complexo biológico que pode ajudar na sobrevivência do planeta”, destaca.

Além disso, para Araquém, a fotografia é um dos maiores instrumentos com capacidade para criar essa consciência ambiental. Para ele, a fotografia é uma das trilhas possíveis para retomar o caminho de preservação e amor à natureza brasileira. “O Brasil pode ser protagonista dessa nova consciência, porque ele é um país novo, só que é preciso plantar. Inclusive, plantar essa nova ideia na cabeça dos jovens. A fotografia é um grande instrumento, um instrumento valioso de esclarecimento e de testemunho”, comenta ele.

Os primeiros contatos com a fotografia

Com grande naturalidade e leveza ao falar, a tranquilidade em sua voz marca as relações entre diversas histórias que delimitam o início da carreira de fotógrafo. Em um primeiro momento, retomando lembranças durante a graduação em jornalismo, Araquém destaca a influência de Kaneto Shindo, um produtor, diretor, autor e roteirista japonês responsável pela criação de diversas obras as quais, segundo ele, são muito sutis. “A fotografia entrou comigo também num fato extraordinário. Eu assisti um filme, quando, de repente, entrei numa sessão da meia-noite em Santos, que se chamava Sessão Maldita e eram só filmes de arte. Eu estava fazendo o curso e já gostava muito de escrever. O filme que me impressionou foi a Ilha Nua [de Kaneto Shindo]”, descreve.

Assemelhar a relação entre o ser humano e o oxigênio diante a figura de Araquém e a prática fotográfica é uma boa maneira para tentar explicar a representação que essa profissão mantém em sua vida. “A fotografia e eu somos farinha do mesmo saco. É uma expressão que eu uso para dizer que para mim a fotografia é oxigênio. Isso, na verdade, é muito louco porque hoje a fotografia se confunde com a minha vida. Então, eu posso publicar ou não, mas a todo instante eu penso a fotografia, a todo instante eu estou fazendo exercícios visuais. Eu estou sempre em estado de fotografar”, esclarece. Além disso, para continuar o entendimento sobre a intimidade que Araquém mantém com a fotografia, é necessário imaginá-lo em uma conjuntura que compreende importantes artistas brasileiros. Ao citar Manoel de Barros e a sua percepção de que uma árvore está formada para abrigar pássaros, ele explica que, da mesma forma, entende-se como um ser formado para abrigar a fotografia.

A pobreza, a miséria e a poluição são exemplos de características da fotografia de Araquém Alcântara. Ao contar que inicialmente obtinha o desejo de se tornar escritor, ele menciona que as palavras começaram a se dispor entre tropeços, uma vez que após ingressar no mundo fotográfico a sua vida tornou-se visual e simultânea. “Não tinha veículo para essa minha fotografia de gente pobre humilde. Não tinha veículo para as minhas fotos de bicho. E eu queria abraçar o mundo! Eu falei: ‘Não! O melhor é começar a abraçar a minha aldeia’. E a minha aldeia era Santos, São Paulo, era as crianças sem cérebro nascendo, era a poluição. Então, me dediquei à aldeia e, daqui a pouco, eu estava fazendo belas fotos… das prostitutas do cais, dos navios do porto, o homem do porto, o suor do cais”, relata ele.

A primeira fotografia de resistência ambiental

Após os positivos resultados com as fotografias feitas no contexto de sua aldeia, Alcântara dá os primeiros passos rumo às imagens de cunho ambiental. Ao encontrar a Mata Atlântica, encontrou, também, a primeira oportunidade para produzir uma fotografia de resistência ambiental, a qual viria a rodar o mundo em seguida. “Eu me revoltei com a decisão do governo brasileiro de construir duas usinas atômicas em um lugar de Mata Atlântica virgem, homogenia, um lugar com mais de 50 praias maravilhosas [litoral sul de São Paulo]. Eu parti para essa luta. A minha fotografia ganhou ideologia”, expressa ele.

A emblemática imagem, como ele mesmo conceitua ao pensar o papel que ela teve em sua carreira, traz o seu pai como personagem principal, que segura esqueletos e sepultos de Hiroshima (agosto de 1945), representados em um quadro, no local em que seriam construídas as usinas. A ideia central era informar que as duas usinas atômicas equivaliam à 50 mil bombas de Hiroshima: “Eu fiz uma exposição chamada 50 mil Hiroshimas no MASP. Essa foto foi fruto de um profundo idealismo. Meu pai não cortava cabelos pelas questões dele, pela exigência do candomblé, sua religião. Ele estava se espiritualizando [na época], e tinha essa expressão mística, de sabedoria. Eu queria realmente um personagem que estava ao meu lado”, relembra. Para complementar a visão dessa figura, é importante esclarecer que o seu pai era marítimo, cozinheiro de navio. Depois de muita insistência por parte do fotógrafo, ele decidiu andar com o filho. Para Araquém, foi uma peregrinação: “Uma coisa meio ‘pagadora de promessas’. Sabe quando você está espiando a ignorância humana?”.

Manoel Alcântara, pai de Araquém Alcântara, como personagem da composição fotográfica de resistência ambiental. Foto: Reprodução/Facebook

Todavia, uma história com tamanho significado não termina com um relato tão breve. Araquém continua: “Fiz o quadro, fiz a reprodução dessa foto que me impressionou [imagem dos esqueletos]. A minha irmã me ajudou a comprar a moldura e a colar numa cartolina preta. Eu andei com o meu pai até Peruíbe, depois atravessamos uma praia de 34km, eu era cabeludão junto com ele. Dois baixinhos cabeludos levando um quadro na cabeça. Ninguém acreditava, né? As crianças fugiam da gente. Acho que até os bichos fugiam da gente. Chegamos no lugar da construção das usinas atômicas, o tempo começou a virar, um clima de vento e aquela luz dramática que eu gosto muito. E eu fiz a foto simples dele, com um fundo onde seria a central nuclear, e essa foto correu o mundo. Ela tinha a energia viva de algo feito com profundo sentido de amor e de fraternidade”, expõe.

Assim, Araquém começou a perceber que o seu desejo de abraçar o mundo estava cada vez mais próximo e concreto. Ele conta que, a partir dessa fotografia com o pai, o projeto expandiu e virou Brasil. “Fui para outras Matas Atlânticas, Caatingas, Cerrados e Amazônia. Hoje eu acredito que tenham raras pessoas que tenham ido tanto pra Amazônia como eu”, comenta.

Um cantador do Brasil ou um Brasil encantado?

Araquém se considera um intérprete do Brasil. Um cantador. Mas não seria o Brasil um país privilegiado ao ser escolhido como campo fotográfico desse incrível artista? Ao dedicar a sua vida à celebração das belezas brasileiras, assim como ao apontamento e a provocação de horrores, ele traz Carlos Drummond de Andrade e Tom Jobim como elementos explicativos da sua visão sobre um ser que entrega a vida à natureza. “Como disse Carlos Drummond de Andrade, eu vejo a fotografia como serva da beleza. Eu sigo esses grandes pilares, esses grandes mestres: João Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, Glauber Rocha. Com eles no coração, e ao lado, eu fui entendendo o Brasil. E como dizia Tom Jobim: ‘Ah! O Brasil! O Brasil é para profissionais!’. Para entender esse país, você tem de se dedicar a ele. E eu aprendi que o negócio é andar. Por isso, eu escrevo, para mim só existe um caminho: o caminho do coração, e nele eu viajo, olhando, sem fôlego. É preciso de muitas vidas para sentir o caráter desse povo e eu me dediquei a isso”, compartilha ele. Araquém completa: “Eu sou um cantador e um cantador não escolhe o seu cantar. Já dizia Edu Lobo, com uma música linda: “Canta o mundo que vê”. Eu canto o prazer”.

Veredas: “poemas visuais que refletem o meu sentimento com o sertão”

Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Minas Gerais. Foto: Reprodução/Veredas

Como sequência de Sertão Sem Fim, o livro Veredas, de Araquém Alcântara, é uma obra que reúne poemas visuais responsáveis por transmitir os sentimentos que ele desenvolveu com o sertão brasileiro, além de trazer características da sua relação com o jornalismo ambiental. Ao ser questionado sobre algumas imagens específicas e sobre o contexto que originou o livro, Araquém não contém palavras para retomar a ideia de que o país precisa de intérpretes que frutifiquem as suas belezas naturais.

Entre as diversas imagens que brilham os olhos de leitores e admiradores da arte fotográfica, as de grandes raízes de árvores, segundo Araquém, retratam fortemente as belezas naturais do país e remetem ao sentimento de que o Brasil, para manter a sua grandiosa essência, carece de frutos. “É tanta crueldade que parece impossível, mas como diz um grande poeta, Thiago de Melo, pode fazer escuro, mas eu canto. Ou melhor: “Faz escuro, mas eu canto”. Como dizia também, Carlos Drummond de Andrade, “se nós não nos indignarmos, o vazio da noite, o vazio de tudo, será o dia seguinte”. Hoje, por exemplo, as manchetes dos jornais dizem que as mudanças climáticas estão muito evidentes, as alterações de chuvas, secas do Brasil. Claro! Só que a Amazônia não encontra eco no coração dos brasileiros. Parece que tudo não vai acontecer. Parece inexaurível. Parece que não vai acabar, mas acaba”, relata.

Além disso, fotografias de belas e sábias mulheres também participam da composição artística do livro Veredas. Durante a entrevista, Araquém explica o seu processo de criação, de travessia, com o propósito de buscar o real: “Para mim é tudo muito solto. Durante a viagem, durante a travessia, eu vou ao encontro do real. O real mais do que o real. A chegada não me interessa, o que me interessa é a travessia. O real se apresenta em meio da travessia. Eu vou para lugares perdidos na vida: Cachoeirinha do Buturué, Brotas de Ubatubas, Grao Mogol. Nomes que são verdadeiras canções. O povo brasileiro é completamente belo, digno. Mas esse povo que eu canto é o povo do Veredas. É o povo do Sertão Sem Fim e de todos os outros 50 livros”.

Dona Generosa e Dona Maria, Vã do Moleque, Chapada dos Veadeiros, Goiás. Foto: Reprodução/Veredas

Veredas é um livro que carrega um grande sentido de liberdade em suas composições, desprendido do ódio, do tédio e da mente. Em entrevista para o EmPauta, Araquém conta como acontece a aproximação dele, fotógrafo, com todas as personagens que cruzam a sua trajetória durante o percurso: “Quando eu me aproximo de pessoas, me aproximo do povo, eu não tenho pressa. Fotógrafo não tem que ter pressa. Agora, quando ele está diante de uma situação em que ele pressente – fotografia é pressentimento de vida –, ele tem que estar pronto, de perto. Eu já perdi milhões de fotos, centenas de fotos, por não estar pronto. Por não estar atento. Por outro lado, quando ele chega num lugar de uma comunidade, ele não pode invadir essa comunidade. Ele tem de ser aceito. Então, eu me aproximo dessas pessoas. A fotografia é secundária nesse momento. Mas, em determinado momento, ela eclode, como um ovo. Num determinado momento ela está pronta para germinar. Aí você aperta o botão. Se você tiver essa consciência, a sua fotografia vai exprimir uma força muito maior”.

Maria do Rosário, Grão Mogol, Minas Gerais. Foto: Reprodução/Veredas

Contudo, ao final, um apelo ambiental é reiterado por Araquém, como um gesto que busca manter o propósito de sua fotografia de denúncia e crítica. Para ele, todos os seres vivos estão interligados com a natureza de maneira sinestesial – isto é, de forma espontânea e com tamanha sincronicidade: “Todos os seres vivos, todos integrados num sistema fantástico, com identidade e respiração própria, que fazem parte de um ponto sinestesial no grande universo. Nós temos uma responsabilidade incrível que nós estamos vendendo. Nós somos responsáveis pelo planeta, por um ser vivo, porque nós somos um tecido, uma parte dele”, explica.

Aos jovens, a súplica de um futuro melhor: “Nós não podemos acabar com as abelhas. Não podemos acabar com a Amazônia. Não podemos destruir os ecossistemas. Nós temos que fazer com que as gerações futuras não nos entendam como seres imprudentes que destruíram tudo. Para isso, só o jovem. Claro que inspirados pelos mais velhos, mas só o jovem é que transforma. Os mais velhos já não têm essa energia. Eles são aqueles consultores, aqueles que indicam o caminho, mas o jovem é que faz o caminho. O jovem é que desbrava”.

Projetos futuros:

Araquém, como um bom cantador, não cessa o seu cantar brasileiro. Durante a entrevista, ele compartilha novos projetos que pretende lançar. Quando enquadra a sua fotografia como um trabalho dedicado aos jovens e as crianças, ele conta que está produzindo um livro de bichos para crianças – após o lançamento de Jaguaretê, um livro sobre a onça-pintada, nomeada de Jaguaretê pelo indígenas.

Como um personagem que inspira crianças e adultos ao redor do mundo, o fotógrafo está em processo de preparação para o livro O Brasil de Araquém Alcântara, a obra dos seus 50 anos. É a ideia de um cantador que vive por cantar as belezas do próprio país.

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