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Narrativas revisionistas e negacionismos históricos no governo de Jair Bolsonaro: possibilidades de pesquisa com interfaces da História Digital

Maria Portilho Bagesteiro
(Mestranda em História/PPGH/UFPel)

 

Palácio do Planalto destruição Atos golpistas 8 de janeiro (52755321774).jpg (Wikicommons)

O debate em torno do negacionismo e revisionismo histórico ganhou uma relevância inegável durante o período do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), extrapolando os limites de recortes históricos utilizados em seu discurso. Além do frequente discurso enaltecedor do passado ditatorial do país e seus agentes repressivos, o ex-presidente conseguiu destaque não só nacional, mas internacionalmente acerca do Nazismo e seu abuso indevido.

 A adesão ao discurso negacionista, que se fortaleceu nos últimos anos no Brasil e persiste mesmo após o fim do mandato presidencial, decorre da utilização de várias estratégias para convencer o público de suas ideias. É fundamental entender os elementos que alimentam esses fenômenos na atualidade, considerando que vivemos em uma era caracterizada pela pós-verdade, onde a influência do ciberespaço é significativa. Portanto, é importante investigar esses mecanismos para compreender melhor o impacto do negacionismo em nossa sociedade e, consequentemente, buscar formas eficazes de enfrentá-lo.

Nessa perspectiva, o trabalho de conclusão de curso intitulado “Narrativas revisionistas e negacionismos históricos no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022): uma análise a partir das mídias digitais” teve como objetivo abordar, de forma introdutória, o debate em torno das definições dos conceitos de negacionismo e revisionismo à luz da historiografia. Além disso, buscou-se apresentar as potencialidades de pesquisa do historiador do tempo presente e a utilização das fontes digitais, considerando a repercussão desses discursos no Ensino de História.

Historiografia e o negacionismo em tempos de pós-verdade

Para compreendermos a realidade prática em que se inseriu o negacionismo histórico no discurso do período bolsonarista, é necessário rememorar qual o contexto em que surgiu o conceito e quais foram os atributos que sofisticaram a sua aplicação nos dias atuais. Como parte de identificarmos suas características, os questionamentos básicos se fazem necessários: “o que é o negacionismo? Em que momento ele surge?”.

De acordo com Carlos Orsi (2022), o fenômeno que motiva os sujeitos pode ser exemplificado a partir de dois fatores: psicológico (vaidade ou sobrevivência em grupo) e estratégico (com o intuito de obstruir políticas públicas). Isso destaca o conceito como uma adaptação do termo inglês “denialism”, originado através dos polemistas de origem europeia e norte-americana, os quais não se autodenominavam como “negadores”, mas sim como indivíduos que propunham uma nova visão ou uma reinterpretação da história sob outra perspectiva. De acordo com Marcos Meinerz (2023, p. 24), “o conceito de negacionismo e suas implicações políticas remontam a movimentos surgidos no século XX com a negação do Holocausto”.

 O negacionismo histórico atrelado ao revisionismo ideológico que se fez presente no movimento de negação do Holocausto no século XX, perpassou a omissão e distorção histórica a partir dos documentos e evidências existentes. Seus esforços mascararam-se através das produções de métodos (denominados científicos, no entanto, sem base cientifica) e até mesmo de evidências de que o genocídio jamais aconteceu, ou de forma simplória, não da maneira que se perpetua desde a derrota alemã. A obra de Pierre Naquet (1988) intitulada Os Assassinos da Memória mostrou-se como importante base para compreensão da origem do fenômeno.

Para importantes historiadores do debate acerca do negacionismo histórico na atualidade como Caroline Bauer (2021) e Marcos Napolitano (2021), é necessário sempre salientarmos o revisionismo ideológico ou  como parte indissociável do fenômeno, visto que se utiliza de forma distorcida, a própria práxis do historiador (de revisitar o passado) como parte estratégica de comprovação de demandas atuais. Para isso, de forma objetiva, o revisionismo parte do trabalho científico propõe o desenvolvimento e avanço do conhecimento histórico, enquanto o de matriz ideológica, irá buscar rechaçar o conhecimento produzido a partir dos preceitos éticos.

A partir da pesquisa foi possível identificar a origem do negacionismo no debate acerca do Holocausto e sua impossibilidade de restringi-lo apenas ao contexto, visto que, houve a adaptação à novos temas polêmicos que bifurcaram à aplicação do conceito em diversas áreas, integrando uma grande família – negacionismo histórico, cientifico e climático – composta por negar a ciência e ao mesmo tempo produzir uma imagem semelhante a ela – no que diz respeito aos atributos metodológicos.

Essa expansão de atuação em diversas áreas, pôde ser compreendida como fruto da disseminação de ideias no período em que se tem como veículo propagador a internet e a principal estratégia, a comoção à uma realidade alternativa e o colapso da confiança na ciência: a era da pós-verdade. Considerando as características do período, faz-se mais que necessário a constante reflexão quanto ao papel do historiador nos dias atuais.

A História Digital e a análise do discurso negacionista no governo de Bolsonaro

De maneira a valorar referenciais da História Digital para análise da disseminação do discurso negacionista na era da pós-verdade, é necessário a compreensão de que a área não se caracteriza pela exclusividade da utilização de fontes no suporte digital, mas sim as “próprias experiências humanas digitais – sociais, políticas, culturais, econômicas, científicas – que devem ser definidoras desse campo de estudos” como aponta Gilliard Prado (2021), ou seja, um meio para que se expressará a relação da sociedade com o seu passado.

Com muita frequência, se expressou essa relação de forma problemática, buscando legitimar-se grupos e sujeitos como proporcionadores de uma “veracidade” histórica, claramente influenciado pelo discurso bolsonarista com característica negacionista e de cunho revisionista ideológico. Faz-se necessário o adentrar do historiador no ambiente digital não como um usuário, mas como um pesquisador a considerar as problemáticas de diversos sites, blogs e redes sociais, e sua apropriação de fontes digitais como objeto de estudo.

 Para a presente pesquisa, fez-se de objeto, um conjunto de 16 fontes digitais oriundas da imprensa online e selecionadas a partir das iniciais falas do ex-presidente que repercutiram seu pensamento em relação ao Nazismo e ao Holocausto. Para o tratamento metodológico de Análise de Conteúdo (BARDIN, 1997; FRANCO; 2005) a categorização e classificação, foi essencial para a sistematização do discurso em três eixos: “Nazismo de esquerda”, “Usos abusivos do passado” e “Aproximações com a ideologia nazista”.

A sistematização das fontes que resultou no eixo “Nazismo de esquerda”, permitiu que fosse analisado o discurso constante em que pôde ser identificado um esforço no desvencilhar do passado nazista como movimento da extrema-direita e o deslocamento ao espectro da esquerda. No entanto, suas falas bifurcam-se nas intencionalidades, na qual uma é de equiparar as ideologias e a outra de potencializar e demonizar a ideologia comunista em comparação ao nazismo, tropeçando na incoerência de seus próprios malabarismos.

O segundo eixo “Usos abusivos do passado” é marcado pelo padrão de comportamento semelhante ao ex-presidente, dessa vez, o passado sendo explorado de forma irresponsável por seus colegas de trabalho. O abuso mostrou-se presente na estratégia na equiparação elementos históricos (como a “Noite dos Cristais” e campos de concentração) com fim de construir narrativas distorcidas e anacrônicas para fundamentar suas posições políticas e ideológicas, principalmente no período pandêmico.

O terceiro e último eixo denominado “Aproximações com a ideologia nazista” remonta às evidências polêmicas da inegável amistosidade quanto ao discurso e aos atuais movimentos neonazistas, seja pela semelhança do discurso propagandista, pelo demonizar da ideologia comunista e pelos aspectos característicos das aproximações políticas durante o mandato do ex-presidente. Esses fatos não devem ser tomados como mero acaso e é necessário compreender que intencionalidades em detrimento de objetivos atuais, se mostraram presentes.

Considerando a perspectiva negacionista e de revisionismo ideológico do discurso que teve seu auge no período de Jair Bolsonaro, o trabalho ainda propôs a reflexão de sua reverberação em produções de temática relacionadas ao Nazismo da Brasil Paralelo com objetivos “educacionais” que condizem com o discurso, possuindo em sua característica os elementos elencados na expressão bolsonarista. Essas produções influenciaram na preocupação, produção e proposições de intervenção docente com base na mediação, aproximada da historiografia acadêmica e considerando as contribuições da História Pública, que permite um acesso à história de forma transparente, envolvente e crítica, tanto dentro quanto fora das salas de aula.

Torna-se fundamental para fortalecer a compreensão coletiva do passado e do presente, fornecendo uma base sólida para enfrentar desafios contemporâneos, como os discursos revisionistas e a disseminação de informações distorcidas na era digital.

Considerações finais

A pesquisa que resultou no trabalho de conclusão de curso da graduação proporcionou o levantamento quanto ao debate historiográfico acerca de temáticas relacionadas ao negacionismo e revisionismo na era da pós-verdade. Sua origem retoma ao período posterior à Segunda Guerra Mundial, no qual buscava-se descredibilizar o testemunho dos judeus acerca do holocausto como registrado na historiografia. Além disso, é evidente que o movimento que se originou na Europa e posteriormente, nos Estados Unidos, foi precursor de atuais grupos da extrema-direita que se alimentam do método ou das teorias possuem como sua característica o descredibilizar a ciência.

Frente a esses desafios, a figura do historiador-professor mostra-se de demasiada necessidade, a partir do momento em que esses grupos se utilizam dos espaços digitais para perpetuar e circular ideais negacionistas e revisionistas, resultando no constante aperfeiçoamento do seu ofício, enquanto historiador ou professor de história.

É evidente que o período do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) potencializou a expressão de grupos alinhados à extrema-direita, tais como os neonazistas. A utilização do passado nazista como inspiração em alguns aspectos não pode ser negada, assim como, aproximações e representações do bolsonarismo como expressão das novas direitas. O negacionismo histórico presente no discurso do ex-presidente e seus aliados possuem reverberação mesmo após o fim de seu mandato, isso ficou evidente através dos avanços do conservadorismo em relação à atuação docente, que ainda se mantém cerceada.

A pesquisa a partir das fontes digitais revelou-se de grande importância, possibilitando a adequada salvaguarda no Portal ClioHD e a subsequente análise desses materiais. Isso permitiu manter viva a memória das ações do negacionismo e revisionismos históricos, bem como dos usos sociais e políticos do passado, e seus impactos no ensino de história atualmente. É evidente que tanto a cultura histórica quanto a cultura política estão em constante evolução, criando assim um terreno fértil para futuras investigações nessa área.

Referências:

ALMEIDA, Fábio Chang. Internet, fontes digitais e pesquisa histórica. In: BARROS, José d’Assunção (Org.). História Digital: a historiografia diante dos recursos e demandas de um novo tempo. Editora Vozes, 2022, p. 101-119.

BARROS, José D’Assunção (org.). História Digital: a historiografia diante dos recursos e demandas de um novo tempo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

BAUER, Caroline. Negacionismos históricos e os usos políticos do passado na contemporaneidade. In: BONETE, Wilian Junior; DANTAS, Jhonatan dos santos (orgs.) Transformações sociais no mundo contemporâneo: entre olhares e reflexões. Ananindeua: Cabana, 2021, p. 43-57

MEINERZ, Marcos. O negacionismo do holocausto como estratégia política contemporânea: uma análise a partir de discursos de extrema-direita difundidos entre os séculos XX e XXI. Revista Eletrônica História em Reflexão, [S. l.], v. 17, n. 33, p. 21–51, 2023. DOI: 10.30612/rehr.v17i33.16126. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/16126. Acesso em: 18 ago. 2023.

NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo e Revisionismo histórico no século XXI. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla. Novos combates pela História: desafios, ensino. São Paulo: Contexto, 2021, p.85-114.

NAQUET, V. Os Assassinos da Memória. Campinas. Editora Unicamp, 1987.

PRADO, Giliard da Silva. Por uma história digital: o ofício de historiador na era da internet. Revista Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 13, n. 34, p. 1-35, set./dez., 2021. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180313342021e0201. Acesso em: 05 mai. 2023.

 

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Artigo publicado em 09 de maio de 2024

Como citar este artigo: BAGESTEIRO, Maria Portilho. Narrativas revisionistas e negacionismos históricos no governo de Jair Bolsonaro: possibilidades de pesquisa com interfaces da História Digital. In: Artigos Portal Clio HD, 2024. Disponível em: (inserir o link do artigo).

Sobre a autora:

Graduada em Licenciatura em História (UFPEL) e Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFPEL) e bolsista CAPES. É integrante do grupo de pesquisa HEDUCA – História e Educação: textos, escritas e leituras (CNPQ) coordenado pela Profa. Dra. Lisiane Sias Manke e integrante do projeto “Portal Clio HD – Acervo de Fontes e Objetos Digitais para o Ensino e a Pesquisa em História” coordenado pelo Prof. Dr. Wilian Junior Bonete. Possui interesse de pesquisa em temas relativos ao Ensino de História, História Digital, Usos do Passado e Negacionismos Históricos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6826993127523625