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Fontes digitais e a organização de uma pesquisa em História

Prof. Dr. João Júlio Gomes dos Santos Júnior*
(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC)

 

Cluttered computer desktop, a common example of digital hoarding (2017)

Trabalhar com fontes digitais já não é mais uma novidade para os historiadores na atualidade. O próprio desenvolvimento da informática levou a profissão a se adequar ao rápido desenvolvimento de equipamentos e recursos digitais. Essas novidades trouxeram uma redução do tempo necessário para realizar tarefas simples da nossa profissão, como, por exemplo, transcrições de fontes, revisões ortográficas e edição de textos[i].

De maneira paralela, a própria Web avançou provocando uma rápida incorporação das fontes digitais nas formas de escrever a história nos dias de hoje. Na primeira fase, conhecida como Web 1.0, a novidade eram páginas com hiperlinks e as possibilidades de relacionamento de conteúdo entre um site e outro, sendo o usuário apenas um sujeito passível nessa relação. Na fase 2.0 foi a vez da interatividade entre usuários, sites, blogs e redes sociais[ii]. Talvez, um dos principais símbolos dessa atividade compartilhada seja a própria Wikipédia, e seu caráter colaborativo[iii].

Por mais que todos esses recursos tecnológicos tenham alterado a lógica da prática da pesquisa, grande parte dos historiadores preferem continuar acreditando que o método histórico tradicional seria o suficiente para dar conta dessa nova realidade e não refletem profundamente sobre o impacto da mudança que eles vivenciam[iv]. Há outros que reconhecem a transformação da profissão, mas que acreditam que, tal como já aconteceu anteriormente com a incorporação de outros tipos de fontes – vinculada a própria dinâmica das escolas históricas – o método histórico também irá se adaptar para dar conta das fontes que são produzidas no âmbito digital[v].

Contudo, ao tratar de fontes digitais produzidas no tempo presente é preciso ter uma série de cuidados metodológicos. A primeira é a clareza da distinção entre uma fonte digitalizada e uma fonte digital. Enquanto a primeira é uma forma de remidiatização de um documento original, que mantém sua materialidade preservada por algum arquivo físico, a segunda já é produzida e criada de maneira totalmente digital[vi]. Essa distinção é importante para pensarmos as redes sociais (Facebook, Instagram e Twitter), uma vez que os perfis e páginas que tratam sobre o passado, por vezes, reproduzem fontes primárias (desde digitalização de fotos, documentos ou vídeos antigos gravados em equipamentos já ultrapassados em termos tecnológicos). Portanto, nesses casos, não se trata de uma simples reprodução de fontes primárias, mas sim uma remidiatização que não substitui a experiência original – mesmo com milhões de cores e pixels da tela de um computador a reprodução, em si, já não é mais a mesma[vii].

Além disso, é preciso lidar com um aspecto fundamental das fontes digitais, sua volatilidade/instabilidade. Como alertou Fábio Chang de Almeida, em um texto pioneiro, há muitos sites (ou contas de redes sociais) que possuem um caráter efêmero e cujos conteúdos podem ser “perdidos” com a sua desativação pelos seus produtores/criadores. Nesse sentido, em uma pesquisa que se utilize de documentos digitais, ou até mesmo digitalizados, é fundamental construir o seu próprio banco de dados a partir de uma “arqueologia de salvamento” desses materiais, através de downloads dos arquivos ou prints (cópias instantâneas feita pela captura da tela do computador/celular)[viii].

Uma vez que as fontes tenham sido salvas é chegada a hora de organizá-las em um banco de dados. Ainda são relativamente poucas as experiências de historiadores que trabalham com banco de dados aplicados à pesquisa histórica. Isso acontece em função de uma série de motivos. O principal deles é a ausência desse debate na formação específica do historiador. Ou seja, existe um claro descompasso entre o rápido avanço das tecnologias digitais e a incorporação desses saberes na prática de pesquisa[ix].

Para muitos historiadores, o nosso trabalho continua sendo visto nos mesmos moldes e princípios que deram origem a disciplina no século XIX. Em síntese, um ofício que respeita os mesmos princípios metódicos que são ensinados de uma geração à outra, de forma contínua e sem modificação. Esse modelo disciplinar tradicional vem sofrendo inúmeras críticas quando confrontado aos usos práticos que estão sendo feitos do passado nos dias de hoje. Rodrigo Turin foi extremamente feliz quando resumiu a questão entre o passado científico/disciplinar, o passado prático e a necessidade de reformulação curricular da formação do historiador:

Se o foco do primeiro debate gira em torno de habilidades técnicas e de virtudes epistêmicas que garantam ao historiador profissional a produção controlada de uma verdade histórica (distanciamento, desconfiança e objetividade no trato com documentos), no segundo debate, o foco está direcionado ao consumo difuso de passados, às demandas de memória e ao que vem hoje se denominando de “passado prático”, voltado às dimensões éticas e políticas (White, 2014). Voltados a públicos e a finalidades distintas, esses dois debates atuais revelam tanto a permanência de imagens tradicionais do historiador, sedimentadas pela herança disciplinar, como também a necessidade de sua reorientação diante de desafios contemporâneos, como a redefinição dos objetos e recortes cronológicos que definem as grades curriculares, a inserção e a formação de novas habilidades voltadas a novos mercados de trabalho e o trabalho a respeito das demandas de memória por parte de diferentes grupos e identidades sociais, étnicas e de gênero[x].

Fica claro, portanto, que os avanços tecnológicos alteraram por completo a lógica disciplinar. Além disso, o mundo sofreu importantes mudanças a partir da década de 1990, o que deixou claro a necessidade de se pensar, igualmente, novas formas de se escrever a História que fossem mais condizentes com as características do tempo atual[xi].

Assistimos o mundo digital invadir a prática do historiador em todos os níveis. Se antes passávamos os dias inteiros fechados em bibliotecas e arquivos, o que implicava um gasto enorme de tempo, agora podemos acessar a tudo de dentro de casa, independentemente do horário de funcionamento da biblioteca ou do arquivo. O excesso de trabalho virou regra e menosprezamos os efeitos cotidianos desse desgaste e estresse. O historiador brinca perigosamente com a síndrome burnout e já não é incomum ouvir falar em depressão entre historiadores[xii].

No entanto, mesmo que o historiador tenha incorporado as fontes digitais à sua prática de pesquisa, a questão da organização retorna ao centro do debate. Estamos mergulhados em fontes e corremos o risco de nos perder em meio ao excesso de fontes que estão disponíveis nos dias de hoje, seja as digitalizadas ou as que já nasceram de forma digital. Como diz o historiador Tiago Gil, nós “gostamos de guardar tudo, mas não adianta guardar tudo fora de ordem, pois é o mesmo que não guardar. Ter e não encontrar é como não ter”[xiii].

É nesse sentido que os bancos de dados começaram a ser utilizados pelos historiadores, como uma forma de organizar e sistematizar as ideias e não as perder em meio a quantidades cada vez maiores de informações. Há uma variedade de softwares comerciais que foram utilizados pela historiografia, tais como Excel, Access e FileMaker. No entanto, esses produtos foram pensados para outros fins, o que gera a necessidade de serem adaptados a partir da criatividade e intimidade tecnológica do historiador[xiv].

Esse não é o caso do Tropy, um programa originalmente criado no Roy Rosenzweig Center for History and New Media (RRCHNM) e pensado como solução de organização digital para historiadores. Trata-se um software gratuito, de código aberto e produzido por um time internacional de pesquisadores. Atualmente é desenvolvido em parceria entre o RRCHNM e o Luxembourg Center for Contemporany and Digital History (C2DH) e o Digital Scholar, uma corporação sem fins lucrativos que opera projetos aliados como Zotero, Omeka e Sourcery[xv].

O projeto de pesquisa “O passado dos esportes nas redes sociais: uma análise das representações narrativas no Instagram, Facebook e Twitter” tem se utilizado do Tropy como recurso de organização das fontes digitais recolhidas inicialmente no Instagram. Por mais que existam possibilidades de aplicar ao Instagram metodologias de big data a partir de palavras-chaves e hashtags, tal como já é feito em relação ao Twitter, nosso trabalho tem sido mais artesanal[xvi].

Depois de identificar algum perfil que faça representações do passado dos esportes, buscamos fazer print das publicações e as colocamos no Tropy para organização e categorização através das etiquetas. Cada postagem se transforma em um item digital que pode incluir transcrição, comentários, seleções de partes da imagem para destaque e inclusão de metadados da fonte. Esse procedimento possibilita uma maior familiaridade com as fontes primárias e facilitam na hora da escrita acadêmica.

Não é preciso que o historiador se transforme em programador – como havia anunciado Le Roy Ladurie, em 1967[xvii]. Contudo, tampouco podemos fechar nossos olhos para as rápidas transformações tecnológicas que podem facilitar nosso trabalho[xviii].

Referências

ALMEIDA, F. C. DE. O Historiador e as Fontes Digitais: uma visão acerca da Internet como fonte primária para Pesquisas Históricas. Revista Aedos, v. 3, n. 8, 11 abr. 2011.

ALMEIDA, F. C. DE. Internet, fontes digitais e pesquisa histórica. Em: BARROS, J. D. (Ed.). História Digital: A Historiografia diante dos recursos e demandas de um novo tempo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022. p. 101–119.

BONALDO, R. B. História mais do que humana: descrevendo o futuro como atualização repetidora da Inteligência Artificial. História (São Paulo), v. 42, p. 1–28, 2023.

COSTA, M. A. F. DA. Ensino de História & historiografia escolar digital. Curitiba, PR: CRV, 2021.

FIGUEIREDO, L. R. História e Informática: o uso do computador. Em: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Eds.). Domínios da História. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1997. p. 591–620.

FLORES, M. F. DA C. T. Os bancos de dados, os arquivos digitais e o papel do historiador. Acervo, v. 28, n. 2, p. 240–251, 27 nov. 2015.

GIL, T. L. Como se faz um banco de dados (em História). Porto Alegre: Ladeira Livros, 2015.

HIGHFIELD, T.; LEAVER, T. A methodology for mapping Instagram hashtags. First Monday, 2015.

IGGERS, G. Desafios do século XXI à historiografia. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 3, n. 4, p. 105–124, 28 jun. 2010.

LOPES, A. P. L. Virada digital? Pesquisa histórica no ciberespaço. Revista Tempo e Argumento, v. 10, n. 24, p. 136–169, 6 ago. 2018.

LUCCHESI, A. Por um debate sobre História e Historiografia Digital. Boletim Historiar, n. 2, 9 abr. 2014.

PRADO, G. DA S. Por uma história digital: o ofício de historiador na era da internet. Revista Tempo e Argumento, v. 13, n. 34, p. 1–35, 22 dez. 2021.

ROSENZWEIG, R. Clio conectada: O futuro do passado na era digital. Tradução: Luis Reyes Gil. 1a edição ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2022.

SILVEIRA, P. T. DA. História, técnica e novas mídias: reflexões sobre a história na era digital. Tese de Doutorado—Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018.

SILVEIRA, P. T. DA. O historiador com CNPJ: depressão, mercado de trabalho e história pública. Revista Tempo e Argumento, v. 12, n. 30, p. e0204–e0204, 2 ago. 2020.

TAVARES, C. C. DA S. História e Informática. Em: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Eds.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2012. p. 301–317.

TERRES, P. T.; PIANTÁ, L. T. Wikipédia: públicos globais, histórias digitais. Esboços: histórias em contextos globais, v. 27, n. 45, p. 264–285, 2020.

TURIN, R. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades. Tempo, v. 24, p. 186–205, ago. 2018.

VARELLA, F. F.; BONALDO, R. B. Negociando autoridades, construindo saberes: a historiografia digital e colaborativa no projeto Teoria da História na Wikipédia. Revista Brasileira de História, v. 40, p. 147–170, 2 dez. 2020.

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[i] (FIGUEIREDO, 1997; TAVARES, 2012).

[ii] (ALMEIDA, 2011, 2022).

[iii] (ROSENZWEIG, 2022; TERRES; PIANTÁ, 2020; VARELLA; BONALDO, 2020).

[iv] (SILVEIRA, 2018) (LOPES, 2018).

[v] (PRADO, 2021).

[vi] Mesmo que a fonte digital ocupe um espaço físico no hardware e represente um arquivo constituído por um sistema de código binário, como alerta Almeida (2011, p. 17).

[vii] (LOPES, 2018, p. 153).

[viii] (ALMEIDA, 2011, p. 16).

[ix] (COSTA, 2021; LUCCHESI, 2014).

[x] (TURIN, 2018, p. 200).

[xi] (IGGERS, 2010).

[xii] (SILVEIRA, 2020).

[xiii] (GIL, 2015, p. 54).

[xiv] (FLORES, 2015).

[xv] https://tropy.org/ [acessado em 11/03/24].

[xvi] (HIGHFIELD; LEAVER, 2015)

[xvii] (LOPES, 2018, p. 140)

[xviii] Para uma discussão sobre a inteligência artificial na história, ver: (BONALDO, 2023).

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Artigo publicado em 14 de março de 2024

Como citar este artigo: SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes dos.  Fontes digitais e a organização de uma pesquisa em História In: Artigos Portal Clio HD, 2024. Disponível em:

Sobre o autor:

 

Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/FAED), Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UDESC – stricto sensu) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória/FAED/UDESC). Coordena o projeto de pesquisa intitulado “O passado dos esportes nas redes sociais: uma análise das representações narrativas no Instagram, Facebook e Twitter”. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0177934206202764