Roberta Duarte da Silva
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
O digital nos rodeia de distintas maneiras em nosso cotidiano. Geralmente, somos acordados pelo despertador dos nossos aparelhos celulares, que, conectados a uma rede de internet, podem nos fornecer instantaneamente informações sobre o clima, as notícias do dia e até mesmo sugestões de rotas para fugir do congestionamento do trânsito matinal. No trajeto para o trabalho ou para a escola, muitas pessoas acessam plataformas de streaming para ouvir músicas ou podcasts, enquanto outras acompanham atualizações em redes sociais ou leem artigos em dispositivos eletrônicos. Nos ambientes de trabalho, o mundo digital se torna ainda mais evidente através do compartilhamento de documentos através da nuvem, reuniões que acontecem por videoconferência e bancos de dados que são acessados em tempo real para a obtenção e a análise de informações. Até mesmo interações sociais, que tradicionalmente ocorriam no espaço físico, se expandiram para o mundo digital, transformando a forma como nos comunicamos.
Quando pensamos sobre como o conhecimento histórico tem sido apropriado e circulado na atualidade, seja através de fontes históricas digitalizadas, a proliferação de conteúdos históricos em diferentes formatos (vídeos, infográficos e jogos) ou pela interação em plataformas colaborativas, percebemos como o mundo digital tem influenciado não apenas os meios pelos quais a história é mobilizada, mas também as formas como o pensamento histórico é construído no contexto contemporâneo. Essa nova estrutura social, marcada por uma comunicação em redes, regida pelas tecnologias digitais e pela dimensão virtual da internet em todas as suas dimensões, gerou mudanças no modo como as pessoas pensam, produzem, consomem e se relacionam (CASTELLS, 2023), como também tem influenciando a maneira como as pessoas aprendem e ensinam, ou seja, como as pessoas se relacionam com a construção do conhecimento. Logo, se faz cada vez mais necessário olhar o processo de formação do pensamento histórico sob a ótica da cultura digital, problematizando os novos arranjos e paradigmas que a tecnologia trouxe para a sociedade.
O debate em torno do conceito do pensar historicamente, tem se ampliado cada vez mais nas últimas décadas, incentivado por reflexões de autores de diferentes concepções epistemológicas da História (Rüsen, 2001; Lévesque, 2008; Seixas, 2013; Borries, 2016;Körber, 2015), que nos permitem pensar sobre as especificidades da construção do pensamento histórico em nossa sociedade. Quando adentramos nesses estudos, verificamos que o exercício do pensar historicamente não estaria atrelado apenas ao domínio de conteúdos históricos (conceito de primeira ordem), mas também na mobilização de conceitos epistemológicos (conceitos de segunda ordem) da nossa disciplina, que estabelece parâmetros e operações relacionados às particularidades da ciência histórica. Nessa perspectiva, o pensar historicamente estaria atrelado então à aquisição dessas competências, que se apresentam de grande relevância para a formação da consciência histórica dos indivíduos em nossa sociedade.
A fim de exemplificar essa como essa ideia se estrutura teoricamente, vamos chamar Rüsen (2001) pra essa conversa, o qual acredita que o exercício de pensar historicamente faz parte da práxis (vida prática) de todo indivíduo que sempre tenta compreender sua existência no mundo partindo de elementos da sua historicidade. Assim, essa capacidade de pensar historicamente não se limita a historiadores ou acadêmicos, mas é uma característica intrínseca do ser humano como agente histórico, atividade essa que podemos chamar de consciência histórica, a qual é amplamente conhecida como a forma pela qual os indivíduos dão sentido ao passado e o conectam ao presente e ao futuro. É um processo que permite interpretar acontecimentos históricos e utilizá-los como referência para compreender o mundo em que vivemos e tomar decisões sobre a vida em sociedade. Seguindo essa perspectiva, Rüsen (2015) enfatiza que o pensamento histórico está profundamente ligado à construção de sentido dedicada à experiência no tempo, característica essencial do ser humano. Logo, o pensar historicamente não se resume à organização cronológica de eventos ou à simples análise de fatos, mas sim à necessidade humana de atribuir significado (sentido) à experiência do tempo. Nesse contexto, o sentido desempenha um papel central ao transformar as vivências temporais em narrativas que orientam a vida prática e a compreensão do mundo, sendo o mecanismo pelo qual o ser humano constrói um vínculo significativo entre passado, presente e futuro.
No cenário da cultura digital, a consciência histórica – conforme definida por Rüsen – adquire novas camadas de complexidade. As operações mentais que possibilitam a interpretação do tempo histórico são constantemente mobilizadas no ambiente digital, seja no consumo de conteúdos historiográficos e midiáticos, seja na produção de narrativas históricas por usuários comuns. A competência narrativa que se apresenta como uma ação inerente do ser humano, por isso, antropologicamente universal, se constitui no pensamento Rüseneano como a maneira como os indivíduos podem externalizar sua consciência histórica, adquirindo uma função orientadora por subentender a interpretação temporal (Rüsen, 2001). Em resumo, Rüsen enfatiza a importância da narrativa na construção e interpretação do conhecimento histórico, destacando a necessidade de considerar diferentes perspectivas, interpretar criticamente as narrativas existentes e refletir sobre as implicações dos eventos históricos. Produção de conteúdos audiovisuais em redes sociais, comentários em postagens, edições colaborativas em plataformas como a Wikipédia são exemplos de como os indivíduos não apenas consomem, mas também produzem história no meio digital. Essas narrativas histórico digitais muitos nos informam sobre como cada indivíduo se relaciona com a historicidade, manifestando assim sua consciência histórica.
O estudo relacionado a competência narrativa é centro de reflexões de outros pensadores da Didática da História de matriz alemã, dentre os quais, podemos citar o historiador alemão Bodo Von Borries, que contribui para pensarmos a criticidade por trás da lógica narrativa da estrutura da História ao destacar que (2016, p. 172-173) “[…] o contar (produzir:“re-construção”) histórias não é somente uma operação mental, mas o exame (análise: “des-construção”) de versões históricas já completadas e oferecidas por outros é igualmente importante”. Ao refletir sobre a lógica narrativa, Borries destaca a importância de refletir sobre a construção do pensamento histórico.
As pessoas podem saber um conjunto de datas (reinos, batalhas, tratados, invenções, etc.), sem serem aptas para narrar a história de alguma forma. Isto pode ser visto acontecendo frequentemente, ainda entre estudantes de história das universidades. (BORRIES et al., 2004). Adicionalmente, eles podem ser aptos a narrar longas histórias sem criticismo e habilidades metodológicas. Em minha opinião, tais características falham para cumprir uma condição da “competência histórica”. Somente a qualificação do pensamento, trabalho, argumentação e julgamento de uma maneira histórica podem ser os objetivos da aprendizagem histórica. A história é interminável e infinita. Isto nunca pode ser aprendido com um “conteúdo” (Borries, 2016, p. 177-178).
O trecho destacado percebemos como o autor se posiciona de maneira crítica a abordagem tradicional de ensino de história focada numa narrativa cronológica ou cânone histórico, que enfatiza a memorização de datas, eventos e nomes, afirmando que esse conhecimento factual, por si só, não capacita alguém a compreender ou narrar a história de maneira significativa. Nesse sentido, percebe-se a defesa de um processo de construção do conhecimento histórico focado em um trabalho qualificado de pensar, argumentar, julgar criticamente as narrativas históricas, através de métodos e critérios que permitam a compreensão do passado de maneira fundamentada e reflexiva.
A aprendizagem histórica que tem como o objetivo o desenvolvimento do pensamento histórico dos estudantes, também foi tema de estudo do historiador alemão Andreas Körber, o qual defende que (2023, p.97) “[…] alunos devem desenvolver habilidades gerais, específicas e conhecimento estrutural que os habilitem a participar da cultura histórica e memorial de sua sociedade (pluralista)”, ou seja, reconhecendo os múltiplos interesses dos diversos grupos sociais que fazem parte da nossa sociedade, bem como desenvolvendo a capacidade de chegar a conclusões e julgamentos com autonomia. Desta maneira, um ensino de História orientado por competências, contribuiria para que estudantes possam:
[…] aplicar (corretamente) conceitos e categorias, procedimentos (métodos e técnicas) comumente usados em sua sociedade a partir de seu próprio pensamento histórico, e a deliberar sobre esses conceitos, categorias, procedimentos e métodos, ou seja, obter a distância intelectual e afetiva necessária, bem como o poder cognitivo, para refletir sobre seus benefícios e limites, as premissas inerentes a eles, sua adequação a um problema específico, etc (Körber, 2023, p. 97).
De maneira geral, percebemos que esses autores nos impulsionam a refletir sobre a construção de um pensamento histórico que não se limite à mera reprodução de informações sobre o passado, mas que seja dominado por uma postura crítica, reflexiva e sobretudo, responsável sobre as narrativas históricas que são produzidas. Em uma sociedade permeada de todos os lados pela cultura digital, onde coexistem diversas perspectivas e narrativas históricas, é essencial que os indivíduos estejam preparados para lidar com essa diversidade de informações de maneira fundamentada.
Nos últimos anos, termos como fake news e negacionismo passaram a ocupar um espaço central no vocabulário social, refletindo desafios crescentes para a construção de um pensamento histórico alinhado com a perspectiva ética e reflexiva. O ambiente digital, marcado pela lógica algorítmica das redes sociais, favorece a disseminação de conteúdos polarizadores, muitas vezes pautados por interpretações simplistas ou distorcidas do passado, questão essa que não apenas compromete a compreensão da história, mas também influencia a forma como os indivíduos se relacionam com essas narrativas, reforçando preconceitos e limitando o debate público.
Diante desse cenário, a preocupação com o controle e a regulação dessas narrativas no espaço digital torna-se ainda mais urgente. No entanto, decisões recentes de grandes empresas de tecnologia, como a Meta, empresa dona das redes sociais do Facebook e do Instagram, de reduzir ou descontinuar esforços para conter a desinformação em suas plataformas agravam esse problema. Se antes com um programa mais rígido de verificação de fatos, já presenciávamos uma chuva de desinformação diárias em diversos veículos midiáticos, agora com a ausência de mecanismos eficazes de moderação, podemos prever uma ampliação de discursos históricos distorcidos, permitindo que informações falsas e narrativas negacionistas se espalhem com ainda mais facilidade. O impacto desse tipo de desinformação vai além do espaço digital, pois molda percepções coletivas, influencia decisões políticas e reforça a intolerância social, comprometendo não apenas a compreensão do passado, mas também uma vivência democrática na sociedade contemporânea.
Todas as questões aqui apontadas apresentam-se como desafios a historiadores docentes na chamada “Era Google”, tomando emprestada a expressão cunhada por Carlo Ginzburg (2010) em conferência realizada no Brasil no evento fronteiras do pensamento em que afirma que “[…] no presente eletrônico o passado se dissolve”. Podemos interpretar essa afirmativa, partindo de várias questões, mas sobretudo podemos utilizá-la para pensar sobre a relação da sociedade com o conhecimento histórico através da cultura digital, pois ao mesmo tempo em que o digital amplia o acesso a documentos, registros e narrativas sobre o passado, ele também fragiliza as formas como esse conhecimento é mobilizado. A multiplicidade de fontes disponíveis na internet pode tanto enriquecer o repertório histórico dos indivíduos quanto gerar um cenário de desorientação, em que diferentes versões da história coexistem sem critérios claros de validação. Dessa maneira, o passado não se dissolve por falta de informações, mas sim pela dificuldade crescente em distinguir saberes historicamente fundamentados de discursos enviesados, manipulados ou descontextualizados.
Nesse cenário, enxergamos que o desenvolvimento do pensamento histórico voltado para a formação de conceitos epistemológicos de segunda ordem possa contribuir de maneira efetiva para a construção de uma Literacia Histórica (Lee, 2006). Pensando em conceitos chaves que podem ser utilizados para promover o pensamento histórico dos estudantes, Stephane Lévesque (2008) nos apresenta em sua obra Thinking historically: educating students for the twenty-first century cinco possibilidades: significado histórico (relevância dos eventos históricos); evidência (trabalho com fontes como base para interpretações); continuidade e mudança (o que mudou e o que permaneceu ao longo do tempo); progresso e declínio (Avaliar se mudanças históricas trouxeram melhorias ou retrocessos, dependendo da perspectiva.); empatia histórica (Compreender as ações e decisões das pessoas no passado a partir do contexto da época).
Muitos outros autores de perspectivas epistemológicas semelhantes vão trazer outras possibilidades de conceitos chaves importantes para a promoção do pensamento histórico (Rüsen, 2001; Lévesque, 2008; Seixas, 2013; Borries, 2016; Körber, 2015). Mas para este momento, antes de encerrar qualquer discussão ou estabelecer caminhos únicos para se pensar sobre esse tema, gostaríamos de ensejar uma ampliação desse debate, pensando em novas possibilidades para a construção e a difusão de narrativas históricas comprometidas com a ética e criticidade. Mais do que nunca, é preciso compreender a História não como um
conjunto fixo de fatos, mas como um campo de disputa de sentidos, no qual a operação historiográfica é fundamental para garantir que as narrativas sobre o passado sejam sustentadas por evidências e pelo compromisso com a verdade histórica. O desafio que se impõe, então, não é apenas evitar que o passado se dissolva, mas garantir que ele continue sendo compreendido a partir de perspectivas fundamentadas cientificamente, permitindo que os indivíduos participem ativamente da construção de uma consciência histórica em meio às transformações da cultura digital.
Referências
BORRIES, Bodo Von. Competência do pensamento histórico, domínio de um panorama histórico ou conhecimento do cânone histórico? Educar Em Revista, 32(60), p. 171–196, 2016.
CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume 1. 25º edição. São Paulo: Paz e Terra, 2023.
GINZBURG, Carlo. História na Era Google. Fronteiras do Pensamento, 29 nov. 2010. (Conferência). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xr0xOQ48Wzs (Vídeo); Acesso: 17 fev. 2025.
LÉVESQUE, Stephane. Thinking historically: educating students for the twenty-first century. Toronto: Buffalo, 2008.
KÖRBER, Andreas. Consciência histórica, competências históricas – e para além? Alguns desenvolvimentos conceituais na didática da História Alemã. In: Körber, Andreas. Formando a consciência histórica em direção a uma aprendizagem histórica transcultural: das abordagens conceituais à constituição das competências históricas. Curitiba: Was Edições, 2023.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: Teoria da História: Fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins, Brasília: Editora da Unb, 2001.
____________. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A. Editores, 2012.
____________. Teoria da História: uma teoria da História como ciência. Tradução: Estevão C. de Rezende Martins. Curitiba: Editora da UFPR, 2015, p. 119.
SEIXAS, Peter. A model of historical thinking. Educational Philosophy and Theory, Randwick, v. 49, n. 6, p.593–605, 2017. DOI: https://doi.org/10.1080/00131857.201 5.1101363.
SEIXAS, Peter; MORTON, Tom. The big six: historical thinking concepts. Toronto: Nelson Education, 2013.
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Artigo publicado em 20 de fevereiro de 2025
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Como citar esse artigo: SILVA, Roberta Duarte da. A construção do pensamento histórico na cultura digital. In: Artigos Portal Clio HD, 2024. Disponível em:
Sobre a autora:
Doutoranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora Substituta do Departamento de Ensino e Currículo da UFPE, membra do Grupo de Estudos e pesquisa em Didática da História – GEPEDH e bolsista do CNPq.