O retrato [Adélia Prado]

Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d’água sob as lentes,
caminhando de terno e gravata,
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar.
Eu quero a dor do homem na festa de casamento,
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,
os olhos cheios d’água sob as lentes.
O coração disparado (1978)

Herança [Orides Fontela]

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

(Rosácea)

Com licença poética [Adélia Prado]  

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Bagagem (1976)

Casamento [Adélia Prado] 

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, que pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Terra de Santa Cruz (1981)

Briga no beco [Adélia Prado]

Encontrei o meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Bagagem (1976)

Mulher querendo ser boa [Adélia Prado]

Me toldam horas de cinza
rachadas de imprecação.
Ó Deus, não me humilhe mais
com esta coceira no púbis.
Responde-me sobre os mortos,
se mamam,
nesta lua visível em pleno dia,
do seu leite de sonho.

O coração disparado (1977)

Fato bruto [Leila Danziger]

A partir de uma foto do jornal O Globo, de 6 de agosto de 2005.

Encontrei a baleia encalhada
entre um anúncio de eletrodomésticos
e algumas notícias gastas.
Palavras de puro mato
envolviam sua carcaça triste e obscena.
A baleia pedia crônicas de espanto
mas nem as ondas revoltam-se –
não há assombro por sua carne inerte.
Na faixa de areia
a moça dá as costas ao fato bruto
que é uma baleia encalhada
e continua tranquila
seu bronzeado.

(Mas o sol não esquece
– naquele mesmo dia
há sessenta anos
– sobre o Pacífico –
o calor de dez mil rivais.)

Minha dúvida é onde fazer um túmulo digno para a baleia –
que conhece as águas e as cinzas.
Enterro seu corpo de imagem
por entre as páginas que nos contam o dilúvio.
Assinalo no calendário
– agosto é mês de baleias mortas.

Três ensaios de fala (2012)

Em Sarajevo [Claudia Roquette-Pinto]

Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.

Margem de manobra (2005)