Motivo [Cecília Meireles]

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Viagem (1939)

Encomenda [Cecília Meireles]

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Vaga música (1942)

Retrato [Cecília Meireles]

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos tão sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou retida
a minha face?

Viagem (1939)

A que buscas em mim, que vive em meio [Gilka Machado]

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou… mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma…

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!

Meu glorioso pecado (1928)

Beijas-me tanto, de uma tal maneira [Gilka Machado]

Beijas-me tanto, de uma tal maneira,
boca do meu Amor, linda assassina,
que não sei definir, por mais que o queira,
teu beijo que entontece e que alucina!

Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,
e todo o senso aos lábios meus se inclina:
morre-me a boca, presa da tonteira
do teu carinho feito de morfina.

Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,
e de ti mesmo sofro a imensa falta;
no vasto vôo de um delíquio infindo…

Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,
e toda me suponho uma árvore alta,
cantando aos céus, de passarinhos cheia…

Meu glorioso pecado (1928)

A uma lavadeira [Gilka Machado]

Minha vizinha lavadeira,
mal nasce o sol, põe-se a cantar,
canta a manhã, a tarde inteira,
mais me parece uma rendeira
uivosos sons desfiando no ar.

De suas mãos o alvor é tanto
que, às vezes tenho a convicção
de que, talvez por um encanto
alvo se torne tudo quanto
os dedos seus tocando vão.

Quando ela vai ao coradouro
finas cambraias estender,
olhos azuis, cabelo louro,
tudo em seu corpo canta em coro
pela alegria de viver.

Se a lua sobre os silenciados
campos do luar abre os lençóis,
não mais, então, lhe ouço os trinados,
mas cuido ver, por sobre os prados,
dormir, sonhar a sua voz.

Debalde o espírito perscruta
de onde lhe vem esse poder
de sem possuir força bruta,
assim tornar clara, impoluta
roupa que às mãos lhe venha ter.

Não poderei, por mais que queira,
dado me fosse e dos desvãos
da minha dor tirara inteira
esta alma, ó linda lavadeira,
para o crisol de tuas mãos.

Ao teu labor, que assim perdura,
tenho este anseio singular:
pudesses tu, leda criatura,
lavar minha alma da amargura
e pô-la ao sol para secar.

Mulher nua (1922)

Ser mulher [Gilka Machado]

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Cristais partidos (1915)

Iniciação [Orides Fontela]

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

— és infinitamente mais estranho.

(Rosácea)

Fala [Orides Fontela]

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

[Transposição, 1969]

 

Miscasting [Hilda Machado]

“So you think salvation lies in pretending?”

Paul Bowles

estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo

onde é que assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe

como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída

 agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave

a barba de mais de três dias

 vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado

soufflé falhado e palavra fútil

 seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir

onde não há ninguém em casa

 os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga