Destruição [Carlos Drummond de Andrade]

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

[Lição de coisas]

Science-fiction [Carlos Drummond de Andrade]

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.

[Lição de coisas]

O bolo [Carlos Drummond de Andrade]

Na mesa interminável comíamos o bolo
interminável
e de súbito o bolo nos comeu.
Vimo-nos mastigados, deglutidos
pela boca de esponja.

No interior da massa não sabemos
o que nos acontece mais lá fora
o bolo interminável
na interminável mesa a que preside
sente falta de nós gula saudosa.

[Lição de coisas]

Aniversário [Carlos Drummond de Andrade]

Um verso, para te salvar
de esquecimento sobre a terra?
Se é em mim que estás esquecida,
o verso lembraria apenas
esta força de esquecimento,
enquanto a vida, sem memória,
vaga atmosfera, se condensa
na pequena caixa em que moras
como os mortos sabem morar.

[Lição de coisas]