A que buscas em mim, que vive em meio [Gilka Machado]

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou… mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma…

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!

Meu glorioso pecado (1928)

Beijas-me tanto, de uma tal maneira [Gilka Machado]

Beijas-me tanto, de uma tal maneira,
boca do meu Amor, linda assassina,
que não sei definir, por mais que o queira,
teu beijo que entontece e que alucina!

Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,
e todo o senso aos lábios meus se inclina:
morre-me a boca, presa da tonteira
do teu carinho feito de morfina.

Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,
e de ti mesmo sofro a imensa falta;
no vasto vôo de um delíquio infindo…

Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,
e toda me suponho uma árvore alta,
cantando aos céus, de passarinhos cheia…

Meu glorioso pecado (1928)

A uma lavadeira [Gilka Machado]

Minha vizinha lavadeira,
mal nasce o sol, põe-se a cantar,
canta a manhã, a tarde inteira,
mais me parece uma rendeira
uivosos sons desfiando no ar.

De suas mãos o alvor é tanto
que, às vezes tenho a convicção
de que, talvez por um encanto
alvo se torne tudo quanto
os dedos seus tocando vão.

Quando ela vai ao coradouro
finas cambraias estender,
olhos azuis, cabelo louro,
tudo em seu corpo canta em coro
pela alegria de viver.

Se a lua sobre os silenciados
campos do luar abre os lençóis,
não mais, então, lhe ouço os trinados,
mas cuido ver, por sobre os prados,
dormir, sonhar a sua voz.

Debalde o espírito perscruta
de onde lhe vem esse poder
de sem possuir força bruta,
assim tornar clara, impoluta
roupa que às mãos lhe venha ter.

Não poderei, por mais que queira,
dado me fosse e dos desvãos
da minha dor tirara inteira
esta alma, ó linda lavadeira,
para o crisol de tuas mãos.

Ao teu labor, que assim perdura,
tenho este anseio singular:
pudesses tu, leda criatura,
lavar minha alma da amargura
e pô-la ao sol para secar.

Mulher nua (1922)

Ser mulher [Gilka Machado]

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Cristais partidos (1915)