Coleção de cacos [Carlos Drummond de Andrade]

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila.
Tem países demais, geografias demais.
Desisto.
Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,
orgulho da cidade.
E toda gente coleciona
os mesmos pedacinhos de papel.
Agora coleciono cacos de louça
quebrada há muito tempo.
Cacos novos não servem.
Brancos também não.
Têm de ser coloridos e vetustos,
desenterrados — faço questão — da horta.
Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
restos de flores não conhecidas.
Tão pouco: só o roxo não delineado,
o carmezim absoluto,
o verde não sabendo
a que xícara serviu.
Mas eu refaço a flor por sua cor,
e é só minha tal flor, se a cor é minha
no caco de tigela.

O caco vem da terra como fruto
a me aguardar, segredo
que morta cozinheira ali depôs
para que um dia eu o desvendasse.
Lavrar, lavrar com mãos impacientes
um ouro desprezado
por todos da família. Bichos pequeninos
fogem de revolvido lar subterrâneo.
Vidros agressivos
ferem os dedos, preço
de descobrimento:
a coleção e seu sinal de sangue;
a coleção e seu risco de tétano;
a coleção que nenhum outro imita.
Escondo-a de José, por que não ria
nem jogue fora esse museu de sonho.

[Boitempo III]

Liquidação [Carlos Drummond de Andrade]

A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.

[Boitempo I]

Casa [Carlos Drummond de Andrade]

Há de dar para a Câmara,
de poder a poder.
No flanco, a Matriz,
de poder a poder.
Ter vista para a serra,
de poder a poder.
Sacadas e sacadas
comandando a paisagem.
Há de ter dez quartos
de portas sempre abertas
ao olho e pisar do chefe.
Areia fina lavada
na sala de visitas.
Alcova no fundo
sufocando o segredo
de cartas e baús
enferrujados.
Terá um pátio
quase espanhol vazio
pedrento
fotografando o silêncio
do sol sobre a laje,
da família sobre o tempo.
Forno estufado
fogão de muita fumaça
e renda de picumã nos barrotes.
Galinheiro cumprido
À sombra de muro úmido.
Quintal erguido
em rampa suave, flores
convertidas em hortaliça
e chão ofertado ao corpo
que adore conviver
com formigas, desenterrar minhocas,
ler revista e nuvem.
Quintal terminando
em pasto infinito
onde um cavalo espere
o dia seguinte
e o bambual receba
telex do vento.
Há de ter tudo isso
mais o quarto de lenha
mais o quarto de arreios
mais a estrebaria
para o chefe apear e montar
na maior comodidade.
Há de ser por fora azul 1911.
Do contrário não é casa.

[Boitempo I]

(In) memória [Carlos Drummond de Andrade]

De cacos, de buracos
de hiatos e de vácuos
de elipses, psius
faz-se, desfaz-se, faz-se
uma incorpórea face,
resumo do existido.

Apura-se o retrato
na mesma transparência:
eliminando cara
situação e trânsito
subitamente vara
o bloqueio da terra.

E chega àquele ponto
onde é tudo moído
no almofariz do ouro:
uma Europa, um museu,
o projetado amar,
o concluso silêncio.

[Boitempo I]

Boitempo [Carlos Drummond de Andrade]

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

[Boitempo I]

Destruição [Carlos Drummond de Andrade]

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

[Lição de coisas]

Science-fiction [Carlos Drummond de Andrade]

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?

Afastou-se o marciano, e persegui-o
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.

[Lição de coisas]

O bolo [Carlos Drummond de Andrade]

Na mesa interminável comíamos o bolo
interminável
e de súbito o bolo nos comeu.
Vimo-nos mastigados, deglutidos
pela boca de esponja.

No interior da massa não sabemos
o que nos acontece mais lá fora
o bolo interminável
na interminável mesa a que preside
sente falta de nós gula saudosa.

[Lição de coisas]

Aniversário [Carlos Drummond de Andrade]

Um verso, para te salvar
de esquecimento sobre a terra?
Se é em mim que estás esquecida,
o verso lembraria apenas
esta força de esquecimento,
enquanto a vida, sem memória,
vaga atmosfera, se condensa
na pequena caixa em que moras
como os mortos sabem morar.

[Lição de coisas]