Diante a divulgação de dados que apontam um aumento no índice de inadimplência no Rio Grande do Sul e no Brasil, o Superávit Caseiro ouviu nesta semana o professor Dr. Alexandre Braga, do Centro de Ciências Socio-Organizacionais (CCSO) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Nesta entrevista, o professor traz comentários e explicações sobre a facilidade que temos para nos endividar e, também, avalia os baixos índices de alfabetização financeira da população brasileira, apontando alternativas para mudar essa realidade. O professor Alexandre Braga é administrador de Empresas, mestre em Contabilidade e doutor em Administração, pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), além de ser especialista em recuperação financeira de empresas. A seguir, você confere as reflexões do professor Braga, que questiona: “Será que a busca pela satisfação imediata não está levando o indivíduo a uma espiral de carência permanente?”. Eis uma boa questão para a reflexão de todos.

SUPERÁVIT – No ano passado, a Fecomércio-RS divulgou que o índice de inadimplência das famílias no Rio Grande do Sul é 81,9%. Primeiro: como essas famílias podem se planejar para deixar de ficar inadimplente? Segundo: qual a principal dica para não entrar para essa estatística?

ALEXANDRE BRAGA – O primeiro fator é criar um orçamento mensal de receitas e de gastos, discriminando minuciosamente cada um dos desembolsos, já com a eventual renegociação de passivos financeiros. É importante, quando da construção do instrumento, que se faça para pelo menos um período de 12 meses, haja visto que alguns gastos ocorrem em épocas específicas, não podendo ser simplesmente colocados de maneira linear, como por exemplo: IPVA, IPTU, matrículas e materiais escolares, entre outros. Este orçamento deve ser aberto e discutido na família, para que todos possam se inteirar da missão de manter as necessidades mais básicas de consumo saciadas, e quando realizarem eventuais gastos mais supérfluos, sempre seja dentro de uma linha saudável em termos financeiros. Tenho convicção de que a má gestão do orçamento pessoal e familiar é causa de enorme desgaste nas relações humanas. Somente por isso já se justificaria a aplicação deste instrumento, pois a falta de prudência financeira deve ser combatida diariamente, e desde cedo. Assim, na realização de uma boa gestão financeira familiar, está também se colaborando para que as crianças e adolescentes compreendam a importância do tema para suas vidas. Tenho orientado trabalhos acadêmicos desta natureza, e os achados remetem a evidente falta de conhecimentos básicos orçamentários, que aliados à falta de prudência e a uma pressão da sociedade pelo imediatismo desenfreado, acabam sendo alguns dos mais fortes fatores de insucesso financeiro das pessoas. Outro fator é a questão da facilidade em obter crédito, dado que as instituições financeiras estão cada vez mais agressivas na oferta de produtos. Se as pessoas gastassem somente o que elas possuem de receita (entrada de recursos), sem se alavancarem financeiramente, não dariam espaço para que os juros entrassem no seu orçamento. Os juros e elevadas parcelas comprometem a capacidade de pouparem em um primeiro momento, ou até mesmo, em situações mais críticas, de poderem adquirir os bens e serviços básicos do dia a dia. Quando nos endividamos, assumimos um compromisso por um determinado tempo, tal como uma prestação de um veículo, uma casa ou uma viagem. Deste modo devemos ter em conta que que a única certeza que temos é de que teremos que honrar este compromisso por um valor maior que o orçado à vista, e ainda: a receita mensal ou faturamento, como se diz no ambiente empresarial, é incerta para uma parte relevante da população, assim como para as organizações. Então temos, por assim dizer, um ponto de exclamação nas dívidas e um ponto de interrogação na disponibilidade de recursos. Isto também deveria ser levado em conta quando da tomada de decisão das pessoas se endividarem.

SUPERÁVIT – Além disso, em pesquisa do PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos – em 2018, o Brasil ficou na posição 17 dos 20 países avaliados no ranking de competência financeira. Como reverter esse cenário de analfabetismo financeiro da população brasileira?

ALEXANDRE BRAGA – Um dos desafios das escolas, especialmente no tema da educação financeira, deveria ser ir além de ensinar a matemática tradicional, tal como as funções básicas, percentuais, etc. Teria que envolver também o comportamento financeiro, a construção de orçamentos, definição de prioridades e também o empreendedorismo, entre as iniciativas que ajudassem os alunos adolescentes a prosperarem como seres humanos, independente da profissão escolhida. A educação financeira deve ser entendida como um tema transversal. Conhecimentos sobre Administração, Contabilidade e Economia não deveriam ser somente para profissionais da área. São noções muito importantes para todas as pessoas, independentemente da sua área de trabalho. Por isso defendo que seja encontrada uma maneira de serem mais incorporados à formação básica do cidadão. Para isso, também, os próprios professores deveriam ser capacitados no tema pelas escolas, afinal se ensina melhor o que mais se conhece.

SUPERÁVIT – Qual a relação que dá para fazer entre os dois dados: endividamento e falta de conhecimentos básicos sobre finanças?

Primeiramente há que se discutir o significado da palavra “endividamento”, pois a conotação mais aplicada é de aspecto negativo. Não que em determinadas circunstâncias não o seja, mas nem sempre endividar-se é ruim. Vejamos pelo aspecto do investimento: Se o indivíduo possui um aluguel de R$ 1.500,00, e não possui capital aplicado em instituições financeiras, por exemplo: Neste caso, comprar um imóvel para sua moradia com uma prestação igual ou menor que este valor pago de aluguel pode ser considerado uma opção viável. Este e outros exemplos desta natureza são considerados como investimentos. Investimentos são caracterizados como gastos que possuem expectativas de gerarem resultados financeiros positivos, neste caso seria o patrimônio após a quitação, ou a diferença a menor entre o aluguel e o valor da parcela. Seria um tipo de “endividamento benéfico ou saudável”. E mesmo assim, é importante tomar cuidado com o tamanho do endividamento pessoal, para que ele não corra o risco de se transformar em inadimplência. Por outro lado, estão os comprometimentos de gastos que não agregam expectativas financeiras positivas no futuro, podendo ser considerados como “endividamentos maléficos” ou destrutivos em termos de valor agregado. Exemplos não faltam, tais como compras de bens não duráveis (e mesmo que duráveis, não essenciais) nos cartões de crédito ou carnês, ou até mesmo nos limites de cheque especial. Temos que nos atentar que diversas lojas estão lucrando mais nos produtos financeiros (em financiar seus clientes) do que na própria margem de lucro dos produtos. Estes gastos que não são considerados investimentos geralmente ocorrem em maior frequência e as decisões de compra são menos pensadas, tomadas na impulsão e não na racionalidade. Devemos, sempre que possível, evita-los.

SUPERÁVIT – Qual o papel da educação (Ensino Fundamental, Médio e Superior) no papel da alfabetização financeira da população?

Papel essencial e não terceirizável. Um cidadão que recebe orientação e formação financeira desde sua base, provavelmente terá mecanismos de defesa suficientes evitar dissabores tais como o consumo excessivo, aceitação de juros altos, endividamentos abusivos e consequente ambiente de frustração e desespero, porque não? Possuindo conhecimentos na área, poderá assim arranjar melhor os seus gastos e planejar seu futuro de forma consciente e responsável. O próprio Ministério da Educação já reconheceu que para o fortalecimento da cidadania é fundamental ensinar os alunos sobre educação financeira dentro da sala de aula. Quando o aluno tem um maior conhecimento e domina o assunto, ele se torna mais consciente sobre a importância de tomar as decisões certas sobre finanças e consumo. O decreto 7.397/2010 instituiu a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), que teve como objetivos promover a educação financeira e previdenciária, tornar o indivíduo capaz para realizar escolhas mais conscientes sobre a administração do seu dinheiro e com isso contribuir para a eficiência e solidez dos mercados financeiros, de capitais, de seguros, de previdência e de capitalização. Porém, infelizmente, muito pouco tem sido observado por parte das escolas na adoção destas práticas. Em um dos trabalhos mais recentes que orientei sobre este tema (Nörnberg, 2020), o objetivo foi verificar se os alunos de um instituto federal gaúcho recebiam algum tipo de apoio específico sobre finanças pessoais, tais como disciplinas, cursos ou seminários específicos. Restou evidente, após o término do trabalho de campo, que os mesmos não o recebem diretamente, sendo esta temática envolvida apenas juntamente com outras disciplinas, de modo casual.

SUPERÁVIT – É possível um país se desenvolver com uma população que quer consumir mais do que ganha e sem resolver problemas sociais básicos, como acesso à saúde e educação de qualidade?

Esta questão possui aderência com o tema do imediatismo, do consumo desenfreado e da falta de consciência financeira. Os desafios sociais são de complexa resolução, dependem em boa parte de maior regramento, investimento, dedicação e esforço, além de mais tempo para serem resolvidos, para então evidenciarem retorno. Geralmente começam a mostrar resultados mais a médio e longo prazo, enquanto uma parcela da população parece carecer de paciência, querem tudo para ontem. Será que a busca pela satisfação imediata não está levando o indivíduo a uma espiral de carência permanente? Estas são algumas reflexões que faço quando vejo questões de saúde (e finanças pessoais estão dentro do tema) sendo deixadas em segundo plano pelos indivíduos, como também pelos agentes públicos.