Em 2021, índice de endividamento das famílias bateu recorde no Brasil. Especialistas analisam o cenário e dão orientações para quem deseja sair do vermelho

A soma de diversos fatores fez com que o índice de endividamento das famílias no Brasil batesse recorde em 2021, conforme números da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio (CNC), divulgados no início desse ano. De acordo com o levantamento, em 2021, a média chegou a 70,9% de famílias endividadas no país, com um crescimento de 4,4% na comparação com 2020, sendo esse o maior aumento desde 2010, ano de início da série histórica.

O cenário é ainda pior no Rio Grande do Sul, onde a Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado do Rio Grande do Sul (Fecomércio-RS) divulgou ainda em 2021 que o índice de inadimplência das famílias gaúchas está em 81,9%. A baixa alfabetização financeira do brasileiro somada com as situações de crises econômicas e à pandemia são a receita perfeita para um aumento no número de famílias endividadas. Diante desse cenário, fica a pergunta: como sair do vermelho?

O professor Dr. Alexandre Braga, do Centro de Ciências Socio-Organizacionais (CCSO) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), salienta que o primeiro passo para isso é criar um orçamento mensal de receitas e de gastos, separando cada um dos desembolsos realizados pelas famílias. “É importante, quando da construção do instrumento, que se faça para pelo menos um período de 12 meses, haja visto que alguns gastos ocorrem em épocas específicas, não podendo ser simplesmente colocados de maneira linear, como por exemplo: IPVA, IPTU, matrículas e materiais escolares, entre outros”, explica.

Para ele, devem ser incluídos nesse processo crianças e adolescentes, para que descubram desde cedo a importância do tema para o seu futuro. “Tenho orientado trabalhos acadêmicos desta natureza, e os achados remetem a evidente falta de conhecimentos básicos orçamentários, que aliados à falta de prudência e a uma pressão da sociedade pelo imediatismo desenfreado, acabam sendo alguns dos mais fortes fatores de insucesso financeiro das pessoas”, revela.

Dentre os elementos que facilitam o endividamento, o professor cita a facilidade de se obter crédito, dado que as instituições financeiras estão cada vez mais agressivas na oferta de produtos. Braga afirma que se as pessoas gastassem somente o que elas possuem de receita, não dariam espaço para que os juros entrassem no seu orçamento. “Os juros e elevadas parcelas comprometem a capacidade de pouparem em um primeiro momento, ou até mesmo, em situações mais críticas, de poderem adquirir os bens e serviços básicos do dia a dia”, previne Braga.

Foram a falta de planejamento e as facilidades de obter crédito que fizeram com que a balconista Fernanda Ferreira, 27 anos, comprometesse todo o seu salário no pagamento de dívidas e juros. “Infelizmente eu me empolguei e acabei fazendo várias compras parceladas. Quando me livrava de uma, fazia outra. Parcelava fatura do cartão de crédito e usava todo o limite do cheque especial. Depois de conversar com um amigo que trabalha num banco, descobri que tinha caído numa armadilha. Só agora, um ano depois, estou começando a sair dessa”, conta, destacando que caiu na tentação de usar todos os limites que lhe eram disponibilizados pelas instituições financeiras, mesmo sem ganhar o suficiente para arcar com todos os gastos.

Outro ponto importante que ajuda o consumidor a entrar em uma situação de inadimplência é a baixa alfabetização financeira dos brasileiros. Em uma pesquisa do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), de 2018, o Brasil ficou em 17° lugar, dentre 20 países avaliados sobre competência financeira. Para o economista e presidente da Associação Comercial de Pelotas (ACP), Mauro Roberto Bom, a inclusão da educação financeira no currículo escolar seria importante para que os adolescentes chegassem à fase adulta com conhecimentos básicos sobre finanças. “As pessoas precisam conhecer mais como funcionam os mecanismos financeiros do cotidiano, como o cheque especial, o cartão de crédito, o que representa o parcelamento da fatura, o que é uma taxa de juros do governo, etc. Ninguém fala para o jovem sobre isso: o que é uma taxa de juros, o que é o IPTU, o que é o ITBI e outros impostos”, avalia.

O economista acredita que esse ensinamento deveria iniciar a partir do 7° ano do Ensino Fundamental, tendo em vista que se os pais não tiveram alfabetização financeira, dificilmente eles terão habilidades para dar essa formação aos jovens dentro de casa. “Eu há poucos dias conversava com dois estudantes universitários da família sobre como é que funcionava o sistema financeiro da sociedade e um deles me olhou e disse: nunca vimos nada disso. Então, são dois tipos de preparos: um preparo do intelecto e um preparo para a vida”, afirma Mauro Roberto Bom.

Essa avaliação converge com a perspectiva do professor Braga, que afirma que um dos desafios das escolas, especialmente no tema da educação financeira, deveria ser ir além de ensinar a matemática tradicional, tal como as funções básicas, percentuais, etc. “Teria que envolver também o comportamento financeiro, a construção de orçamentos, definição de prioridades e também o empreendedorismo, entre as iniciativas que ajudassem os alunos adolescentes a prosperarem como seres humanos, independente da profissão escolhida. A educação financeira deve ser entendida como um tema transversal”, aponta o docente.

Já o publicitário Tiago Beck, que hoje trabalha com assessoria política, concorda com a perspectiva dos especialistas. Ele avalia que se tivesse tido orientações e formação básica sobre planejamento financeiro tanto ele, quanto amigos e colegas da sua geração, estariam melhor financeiramente. “Eu estou bem, mas sei que ao longo dos anos, se tivesse feito um planejamento bem elaborado, poderia estar numa situação ainda melhor. Muitos dos meus amigos e ex-colegas, no entanto, enfrentam muitas dificuldades hoje em dia justamente porque não tivemos essa formação financeira. Ou seja, quem está endividado poderia estar bem, e quem está bem poderia estar melhor ainda”, avalia o publicitário, que aos 40 anos começa a se preocupar mais com finanças pessoais e, na medida em que estuda o tema, percebe como fez falta orientações básicas no passado.

O professor Braga explica que o endividamento é um compromisso financeiro assumido por um determinado tempo que pode ser feito para comprar um veículo, uma casa ou pagar uma viagem, por exemplo. “Deste modo devemos ter em conta que a única certeza que temos é de que teremos que honrar este compromisso por um valor maior que o orçado à vista, e ainda: a receita mensal ou faturamento, como se diz no ambiente empresarial, é incerta para uma parte relevante da população, assim como para as organizações. Então temos, por assim dizer, um ponto de exclamação nas dívidas e um ponto de interrogação na disponibilidade de recursos. Isto também deveria ser levado em conta quando da tomada de decisão das pessoas se endividarem”, orienta. No entanto, o docente salienta que há mais de uma possibilidade para o uso da palavra “endividamento”. Ele lembra que geralmente a palavra é usada em sentido negativo, porém, em alguns casos, como no dos investimentos, ela pode ser um recurso importante para o sucesso. “Seria um tipo de endividamento benéfico ou saudável”, destaca, chamando a atenção que, mesmo nesses casos, é preciso tomar cuidado com o tamanho do endividamento pessoal, para que ele não corra o risco de se transformar em inadimplência.

Dessa forma, para quem está no vermelho e integra as estatísticas apresentadas no início dessa reportagem, é preciso dar os primeiros passos. O primeiro é fazer o planejamento financeiro para 12 meses, conforme apontou o professor Braga. Posteriormente, verificando que os gastos estão maiores do que as receitas, é preciso adequar o orçamento, fazendo os ajustes necessários para que despesas fixas e regulares, tais como aluguel, parcela de compras, conta de luz, água, supermercado, combustível, etc, não consumam todo o orçamento. Feito isso, é preciso fazer um planejamento sobre como deixar a inadimplência e, nessa fase, pode ser importante uma renegociação de dívida, desde que ela esteja planejada, pois não adianta o cidadão renegociar a dívida apenas para postergar o compromisso e, no dia dos vencimentos, não poder pagar. “É muito difícil, exige muito sacrifício, mas é a única saída. Eu tive que chegar no fundo do poço para me dar conta disso. Minha dica é para que as pessoas se informem e se controlem para não passar pelo que eu passei”, adverte a balconista Fernanda Ferreira, que projeta sair do vermelho até a metade do ano.

Afinal, esse é um processo que pode ser demorado e dolorido, que exige paciência e disciplina. Assim, investir tempo em reeducação financeira e tentar sair da cultura do consumo imediato, pode ser um bom investimento para deixar a indesejável lista de inadimplentes. Afinal, como destacou o professor da Universidade Federal de Minhas Gerais (UFMG) Juliano Pinheiro na palestra “Finanças pessoais em tempos de crise” realizada de forma online no ano passado: “Não gaste o dinheiro que você não tem para impressionar quem você não conhece”.