O dia 17 de maio, dia mundial contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia, tem muita importância para a Organização das Nações Unidas. No último dia 17/05, a ONU publicou um artigo na ONU News destacando os avanços para a luta LGBTQ+ pelo mundo, incluindo a legalização do casamento homoafetivo e a descriminalização de identidades queer. O Fundo de População da ONU, O UNFPA apontou os avanços: desde 2019 até então, 11 países haviam legalizado o casamento igualitário, e desde 2017 até agora, 13 países removeram leis discriminatórias, frisando ainda que a ONU tem pedido por melhor atendimento de saúde a pessoas trans e intersexo, inclusive nos casos de HIV. Ainda assim, no artigo é destacado também que as dificuldades, como por exemplo a existência da pena de morte para pessoas LGBTQ+ em alguns países, o que lhes mantém numa vulnerabilidade extrema, que é acentuada com as mudanças climáticas e as narrativas anti-woke adotadas por alguns líderes políticos. António Guterres, o secretário-geral da ONU, pronunciou-se a favor dos direitos humanos e LGBTQ+, e repudia quaisquer formas de opressão. Segundo Guterres, ”Precisamos de ações em todo o mundo para tornar esses direitos uma realidade”.
Como definir gênero? O que é ser homem ou mulher? E o que diverge disto? Para Monique Wittig (1994), em tradução livre,
Uma abordagem feminista materialista mostra que o que consideramos como causa ou origem da opressão é, na verdade, apenas a marca imposta pelo opressor; o “mito da mulher”, mais seus efeitos materiais e manifestações na consciência e nos corpos apropriados das mulheres. Assim, esta marca não preexiste à opressão. . . o sexo é tomado como um “dado imediato”, um “dado sensato”, “características físicas”, pertencente a uma ordem natural. Mas o que acreditamos ser uma percepção física e direta é apenas uma construção sofisticada e mítica, uma “formação imaginária”. (WITTIG, 1994)
Ao utilizarmos a definição de Wittig, fica mais simples entender do que se trata o gênero: uma construção. Não existem na natureza papéis de gênero inatos como ocorrem nas sociedades humanas — uma leoa não prefere rosa à azul, tampouco um filhote de cachorro macho prefere um brinquedo masculino ou feminino. Tanto o gênero quanto os estereótipos aos quais somos forçados a submetermos são confecções sociais profundamente imbricadas no tecido da sociedade. Judith Butler (2002) nos mostra, de forma aprofundada, como os paradigmas sociais mantêm incólume nossas percepções de gênero.
Consideremos não apenas que as ambiguidades e incoerências dentro e entre as práticas heterossexuais, homossexuais e bissexuais são suprimidas e redescritas dentro da estrutura reificada do binário disjuntivo e assimétrico de masculino/feminino, mas que estas configurações culturais de confusão de género funcionam como locais de intervenção, exposição e deslocamento destas reificações. Por outras palavras, a “unidade” de género é o efeito de uma prática reguladora que procura uniformizar a identidade de género através de uma heterossexualidade compulsória. A força desta prática é, através de um aparelho de produção excludente, restringir os significados relativos de “heterossexualidade”, “homossexualidade” e “bissexualidade”, bem como os locais subversivos da sua convergência e ressignificação. O facto de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo procurarem aumentar-se através de uma repetição constante da sua lógica, da sua metafísica e das suas ontologias naturalizadas não implica que a própria repetição deva ser interrompida – como se pudesse ser. (BUTLER, 2002)
Desta forma, proponho que, pelo menos no período da leitura deste blog, sejam suspensas nossas pré noções de gênero e de sociedade, e que imaginemos que sim, gênero é apenas uma construção social e não, não somos determinados pelo pronome que nos é designado no nascimento.
Para a Organização das Nações Unidas, o gênero vem sendo um assunto chave desde sua criação, quando foi estabelecida a Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW), responsável por encontros anuais que elaboram e definem as políticas acerca das mulheres e do gênero. Além disso 1975, foi cunhado pela ONU como o “ano da mulher”, e os anos entre 1976 a 1985 foram subsequentemente nomeados a “década da mulher” pela ONU, e durante esta década três conferências foram realizadas, com uma quarta ocorrendo 10 anos depois. Estas conferências focaram em estratégias para que fosse atingida a igualdade entre homens e mulheres: tomada de decisões equilibrada em termos de gênero, apelando à participação igualitária das mulheres como decisores políticos, e integração da perspectiva de gênero, destacando a necessidade de uma perspectiva de género em todas as fases da elaboração de políticas.
Em relação especificamente ao direito de pessoas trans, segundo Kotwal (2023), existe um complexo número de barreiras que impedem sua representação na ONU, entre elas barreiras legais, estigmas sociais e falta de vontade política. Kotwal faz uma pergunta extremamente pertinente:
Apesar do compromisso das Nações Unidas em promover a igualdade e a inclusão de gênero, porque é que existe uma ausência notável de indivíduos transgênero na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) e noutros órgãos de tomada de decisão e quais são os efeitos potenciais desta exclusão na eficácia da governação global e no bem-estar dos indivíduos transgênero? (KOTWAL, 2023)
Existem diversas leis internacionais que tem o objetivo de proteger os direitos de pessoas transgênero, como por exemplo a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948; a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; um relatório publicado em 2011 pelo O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos que urgia que países defendessem os direitos das pessoas trans e condenassem a discriminação. Ainda assim, para o autor, os problemas da comunidade trans estão longe de serem resolvidos, principalmente pelos desafios no recebimento de serviços e direitos básicos, como o direito de não sofrer violência.
Desta forma, o autor denota que a ausência de pessoas transgênero nas posições tomadoras de decisões da ONU e de outros órgãos é um problema sistemático que dificulta o acesso de pessoas trans a direitos básicos.
Após esta breve contextualização, é preciso que nos façamos cientes de uma extrema guinada ao conservadorismo em todo o mundo, e de como isto pode dificultar a tomada de direito de mulheres e de pessoas não-cis. Isto será demonstrado através de notícias recentes.
Primeiro, é importante citar que o Brasil segue sendo o país do transfemnicídio. Isto é, o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. O “observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente” foi criado pela Transpect Versus Transphobia Worldwide em 2008, e desde então o Brasil é o líder em assassinatos, representando assustadores 30% do total de casos. A maioria destas vítimas são pessoas transfemininas jovens, não-brancas e fora do armário. Unido a isso, os crimes tem tornado-se mais frequentes e violentos, acompanhando as ideias “anti-woke” de pessoas como Donald Trump, Elon Musk e J.K. Rowling — Trump destinou mais de 215 milhões de dólares para propagandas antitrans, Musk tem uma filha transgênero e faz questão de ignorar seus pronomes e seu nome, além de agir como se a mesma houvesse morrido, e J.K. Rowling financia campanhas anti-trans no Reino Unido, inclusive uma das últimas passadas, que define “mulher” a partir de sexo biológico, invalidando a existência de mulheres trans e pessoas transfemininas.
Acerca dos direitos de mulheres cis, estes também estão sendo afetados, como por exemplo com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre aborto, que vai contra o Roe x Wade – caso que tornou o aborto legal nos EUA em 1973. Roe x Wade decorreu da batalha na justiça entre Roe, uma mulher que entrou com uma ação na justiça alegando estupro e pedindo pelo direito ao aborto no Texas e Wade, o promotor público que defendia a lei antiaborto. Ao chegar à Suprema Corte, o argumento de que as leis do Texas acerca do aborto eram inconstitucionais por infringir o direito de privacidade à mulher, e assim o direito ao aborto foi assegurado às mulheres dos EUA. Porém, em 2022, quase 40 anos após a legalização do aborto, a Suprema Corte americana decidiu a favor da proibição no Mississipi após 15 semanas de gestação — o que violava o direito das mulheres ao aborto, já que decidia que agora os estados poderiam versar suas próprias leis acerca do tema. Sendo assim, houve um grande retrocesso na área da autonomia reprodutiva feminina que denota um claro retorno aos valores mais conservadores.
Tudo isto alerta para duas coisas: primeiro, mulheres trans e mulheres cis não são inimigas, e inclusive estão tendo seus direitos diminuidos simultâneamente e poderiam se beneficiar de uma sororidade mútua e segundo, a ONU infelizmente têm falhado em proteger os direitos das mulheres, trans ou cis, e das pessoas que divergem da lógica hétero e cisnormativa. Ainda assim, os esforços demonstrados pelas Nações Unidas precisam ser reconhecidos, principalmente em um momento onde quase tudo parece apontar para a perda de direitos.
Referências
SHAKTINI, Namascar. The Straight Mind and Other Essays. By Monique Wittig. Boston: Beacon Press, 1992. Hypatia, v. 9, n. 1, p. 211-214, 1994.
BUTLER, Judith. Gender trouble. routledge, 2002.
KROOK, Mona Lena; TRUE, Jacqui. Rethinking the life cycles of international norms: The United Nations and the global promotion of gender equality. European journal of international relations, v. 18, n. 1, p. 103-127, 2012.
KOTWAL, Smiley. The Legal Status and Participation of Transgender Individuals in United Nations: An Analysis of Human Rights Laws and Protection. Issue 3 Int’l JL Mgmt. & Human., v. 6, p. 377, 2023.
Brasil segue sendo o país do transfeminicídio: https://catarinas.info/colunas/brasil-segue-sendo-o-pais-do-transfeminicidio/
Suprema Corte do Reino Unido decide que definição legal de mulher é baseada no sexo biológico: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c93g19qe1v2o
Roe x Wade: o que muda com decisão da Suprema Corte dos EUA sobre aborto?: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61929519
ONU destaca avanços e desafios no Dia Internacional contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia: https://news.un.org/pt/story/2024/05/1831761#:~:text=Neste%2017%20de%20maio%2C%20Nações,a%20igualdade%20das%20pessoas%20LGBTQIA%2B.
