A ficção russa que eleva armas biológicas a uma distopia catastrófica

Ficção, ciência, guerra e militarismo, o filme “Estranho Passageiro -Sputnik” (2020) dirigido por Egor Abramenko, transforma a lógica mais absurda em uma possibilidade catastrófica. Antes de analisar este filme estrelado por Oksana Akinshina e disponível agora na Netflix, é louvável ressaltar que algumas prévias podem ser escritas nas linhas seguintes O objetivo é resumir a produção e analisar posteriormente, aspectos importantes de temas internacionais no campo das possibilidades militares e do desarmamento de estoques de armas biológicas.  

(Fonte: Alive AG)

A principal perspectiva do filme se molda ao uso de descobertas e avanços científicos para o desenvolvimento de uma arma mortal. Essa análise não é cinematográfica ou dramaturga, mas sim, sobre uma relação do histórico de armas e conflitos biológicos e o eventual erro retratado pelo filme, a produção de armas com organismos altamente destrutivos. 

Armas biológicas são compostas por microrganismos vivos como vírus e bactérias utilizados para causar doenças e a morte de pessoas, animais e plantas. Organismos patogênicos são bases para a criação desse tipo de armamento utilizado desde a antiguidade. Na biologia, seres vivos são capazes de se reproduzir e responder a estímulos, além de possuir metabolismo e material genético, aspectos que ampliam o poder dos vetores de armas biológicas. No caso desta ficção, o principal vetor é um ser extraterrestre que hospeda o corpo humano.   

O filme se passa em 1983 e retrata a trajetória de dois cosmonautas (astronautas soviéticos) no espaço em uma expedição consequente da corrida espacial. Tudo se modifica quando uma turbulência leva a nave dos astronautas a cair em direção a terra no Cazaquistão Soviético. Ao aterrissar, apenas um dos astronautas sobrevivem, representado no filme, o principal risco para a humanidade.

Após a sequência inicial, o filme se volta ao Instituto de Pesquisas Neurológicas de Moscou, onde a médica Tatiana Yurievna é julgada por utilizar procedimentos “pouco convencionais” para tratar seus pacientes. Em meio a sentença de sua expulsão e responsabilização por negligência, Tatiana é convocada pelo coronel do exército soviético, Semiradov, para tratar de um paciente especial, o cosmonauta, Konstantin Veshnyakov, que abordo do “Órbita-4”, sobreviveu a queda e aparentemente, desenvolveu amnésia após duas semanas no espaço.

Semiradov admira a capacidade de Tatiana em correr riscos e oferece sua estrutura voltada a neuropsicologia para que a médica pudesse se reerguer e restabelecer sua carreira ao tratar o até então herói, Konstantin. No Instituto de Análise e Investigação Científica da URSS no Cazaquistão, Semiradov garante que Tatiana tenha carta branca para ir e vir, assim como, desenvolver seu trabalho, algo que ainda se limita aos interesses da segurança nacional.    

Na primeira noite, Tatiana é chamada pelo coronel em seu quarto para presenciar a principal motivação para o tratamento e estudo do cosmonauta, a manifestação de um parasita alienígena hospedado no corpo de Konstantin que, na verdade, finge não ter conhecimento do ser que habita em seu corpo com receio de que possa ser usado em projetos militares. O parasita de 30 centímetros chega a 1,5 metros ao sair do corpo de Konstantin que mantém sigilo sobre seu conhecimento e ligação com o extraterrestre. A suposta amnésia do cosmonauta impede os avanços de Semiradov. 

(Fonte: Alive AG)

Tatiana descobre que o extraterrestre se alimenta de Cortisol, hormônio esteroide produzido pelo cérebro humano em resposta ao estresse e possivelmente a estímulos como o sentimento de medo. Logo, percebe que extermínios ocorrem sob o comando de Semiradov sem qualquer aval de Moscou. O coronel havia mentido a seus superiores, à imprensa e a Tatiana sobre as realizações laborais após o pouso dos astronautas. Semiradov observa a oportunidade de ascensão militar no contexto político da época e passa a testar o parasita como uma arma, matando prisioneiros: “O vencedor será a pessoa que controla a criatura. Vamos aprender a controlá-la” disse em uma tentativa de convencer Tatiana a colaborar com seus planos. 

Por mais que agentes patogênicos como vírus, fungos e bactérias sejam os principais seres na utilização armamentista, qualquer ser vivo utilizado para essa mesma finalidade deve ser considerado uma arma biológica em potencial. Logo, o passageiro indesejado no filme se torna um agente poderoso para fins militares, o que podemos observar nas cenas finais.

Diferente dos poderes bélico e atômico, o uso de armas biológicas pode ser quase imperceptível em uma civilização, a infiltração do agente patogênico é sorrateira e possivelmente de disseminação agressiva. A ideia de que um ser extraterrestre pudesse representar uma arma biológica da forma como é retratada no filme, poderia redefinir completamente as concepções de armamento biológico, guerra biológica e bioterrorismo. 

O uso de armas biológicas foi proibido internacionalmente pela primeira vez com o Protocolo de Genebra, assinado em 1925 após a primeira Guerra Mundial. No livro “Desarmamento e temas correlatos”, o diplomata Sérgio de Queiroz Duarte aponta para as deficiências neste protocolo: “O protocolo vedava o uso mas não bania o desenvolvimento, a produção e o armazenamento desses agentes” , afirma.

Mas apenas em 1972, a Convenção de Armas Biológicas (CPAB), foi responsável pela decisão de não produção, armazenamento, uso ou proliferação de armas biológicas, banindo a técnica milenar utilizada estrategicamente desde a antiguidade. A convenção passou a valer em 1975 para os 165 países que a assinaram e “foi o primeiro instrumento adotado, no campo do desarmamento, que baniu uma categoria inteira de armas de destruição em massa” (DUARTE, 2011).

Ainda que convenções e protocolos sejam amplamente debatidos entre as nações unidas no campo do desarmamento, é possível testemunhar evidências do uso deste tipo de armamento em conflitos recentes. A fabricação, tratamento e disseminação de compostos patogênicos exigem um alto nível de biossegurança, característica comum de potências como EUA e URSS durante a guerra fria e bem retratadas no filme. O cosmonauta isolado em um laboratório como prisioneiro. Vidros, trajes e até armas são ferramentas responsáveis pela segurança, retrato semelhante às descrições dos quatro níveis de biossegurança estabelecidos mundialmente. Um laboratório de nível 4 possui a mais alta tecnologia para o trabalho com patógenos com o potencial armamentista.  

Em meio a toda estrutura e com uma personalidade ousada, Tatiana passa a conviver mais com o cosmonauta e encontra a imunidade à sua “praga”. O controle tão esperado por Semiradov é a principal motivação para os testes realizados em detentos e por isso, a racionalidade e ética contraditória da médica em relação ao início do filme, são desafios para o coronel. O comandante se convence ainda mais de que é possível controlar a arma biológica enquanto a médica teme pelas vidas perdidas. Neste sentido, podemos observar como médicos, enfermeiros, infectologistas e demais profissionais da saúde podem contribuir para a paz e segurança. O filme demonstra nesse momento, como o pensamento humanitário, a ciência e a tecnologia podem combater grandes males. Cenário semelhante a pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022.   

(Foto: Alive AG)

Em entrevista ao Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), a coordenadora do Laboratório de Modelagem de Doenças, Patricia Cristina Baleeiro Beltrão Braga, classificou as armas biológicas como: “patógenos altamente contagiosos, com alta taxa de mortalidade, que são utilizados para matar uma população”. A coordenadora também afirma que a produção de armas biológicas só é possível com laboratórios do nível 4 em escala de biossegurança, instalações como essa ainda não existem no Brasil.

A lei de Biossegurança Nacional (Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005) criou o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) no Brasil, responsável pela fiscalização e instrumentalização de políticas de biossegurança, órgão superintendente da presidência da república na gestão da segurança nacional.   

Dispostos a fugir do laboratório na base militar do Cazaquistão em direção a Moscou, Tatiana e Konstantin encerram sua história de forma dramática e que, independente de seu gosto para filmes, só poderá ser revelado quando assistir essa produção de Egor Abramenko.

Mesmo com a violação dos direitos internacionais e convenções de guerra, o uso de armas bacteriológicas pode ser classificado em duas instâncias: A guerra biológica e o bioterrorismo. A primeira é voltada ao uso da ofensiva militar e por isso, sua finalidade é promover ataques em massa; na segunda ocasião, o ataque é direcionado, com dano isolado e repentino (CARDOSO, 2008).

Por fim, recomendo que assista o filme mesmo que sua uma hora e cinquenta minutos dividam as opiniões na internet. Analisamos aqui: como o filme prevê a atitude militar frente a riscos nem sempre calculados e oportunos; como um ser extraterrestre poderia ser considerado uma arma biológica, assim como a tentativa de seu uso; e alguns temas relacionados às armas biológicas no Brasil e no Mundo. 

Referências: 

DUARTE, Q. Sérgio. Desarmamento e temas correlatos. Fundação Alexandre de Gusmão: FisicalBook, 2014.

CARDOSO, R. Dora. Bioterrorismo: dados de uma história recente de riscos e incertezas. cienciaesaudecoletiva.com.br, 2008. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/bioterrorismo-dados-de-uma-historia-recente-de-riscos-e-incertezas/3791?id=3791&id=3791. Acesso em: 14 de novembro de 2023.

Armas Biológicas. Biologianet.com. Disponível em: https://www.biologianet.com/curiosidades-biologia/armas-biologicas.htm. Acesso em: 14 de novembro de 2023.