ONU e a ficção-científica: um comparativo entre a realidade e o imaginário

Que a Organização das Nações Unidas (ONU) é o organismo internacional de maior destaque no mundo desde a Segunda Guerra Mundial você já deve saber. Agora, e se a ONU não fosse apenas uma Organização Internacional Intergovernamental (OIG), mas sim uma república constitucional responsável por toda a humanidade na Terra em que o líder máximo é o Secretário Geral?

Prédio da ONU alternativa na cidade de New York. Foto: The Expanse. Distribuição: Prime Video

Pode parecer estranho, afinal, a referida organização que o mundo conhece hoje não é um ator estatal e também não objetiva tal posição, mas com a ficção-científica podemos vislumbrar um cenário diferente, totalmente especulativo, sobre o futuro dos Estados, do nosso planeta e mesmo do lugar do homem na imensidão do Cosmos. Longe das teorias de conspiração – ainda que não alheio a existência destas, o mundo da ficção-científica permite aos leitores e espectadores um sobrevoo ora pelo seu mundo, ora por mundos distantes, cujo texto a seguir permite uma pequena viagem pelo universo repleto de liberdade criativa de The Expanse (série de televisão lançada em 2015) e outras obras.

Ponto de partida

Dado que uma obra será analisada e comparada com a realidade, ainda que longe do objetivo deste post em apresentar qualquer spoiler, é necessário conhecer ao menos a sinopse de The Expanse. Assim, a seguinte sinopse é apresentada no Prime Video – serviço de assinatura que distribui a série no Brasil:

O desaparecimento de Julie Mao, uma jovem rica que se tornou ativista, liga as vidas do detetive Joe Miller (Thomas Jane), do capitão James Holden (Steven Strait) e da subsecretária da ONU Chrisjen (Shoren Aghdashloo). Em meio à tensão política entre à Terra, Marte e o Cinturão, eles desvendam a maior conspiração de todos os tempos.

Apesar de não distribuir a série no Brasil, o serviço de streaming concorrente apresenta algumas outras informações que podem lhe ajudar a compreender o objeto deste texto, veja a sinopse disponibilizada pela Netflix:

Duzentos anos no futuro, um detetive interespacial, o capitão de uma nave e uma diplomata antiguerra cruzam seus caminhos após uma jovem desaparecer misteriosamente.

Verificado o básico sobre a série, para fins de organização textual, a ONU que o mundo conhece hoje será chamada de ONU atual, enquanto a organização fruto da ficção-científica e da poderosa faculdade que é a imaginação humana, será a ONU alternativa.

A constituição da ONU alternativa como federação soberana

Emblema da ONU alternativa, mantendo a projeção azimutal da representação original, adicionando três estrelas na parte superior, duas linhas em ambos os lados e indicações planetárias. O emblema original, foi aprovado pela resolução n.º92 da Assembleia Geral em 7 de Dezembro de 1946. Foto: The Expanse/Distribuição: Prime Video

No mundo singular de The Expanse, indica-se que a ONU alternativa também foi criada em 1945 visando a cooperação internacional e com atuação ao nível global. Entretanto, a partir do século 21, a série segue por um caminho diferente da realidade. Segundo a obra, no século vigente os governos sofriam com uma redução prolongada do seu poder administrativo, tomando como base os efeitos de décadas e séculos de exploração além do limite que o planeta poderia sustentar, com o cenário em questão, a série representa uma conjuntura para lá de utópica em que os Estados nacionais deixaram seus próprios interesses em prol da unificação global – um prato cheio aos conspiracionistas e aficionados por tramas globais para deposição de governos.

É com esse plano de fundo que a ONU alternativa constitui-se não como uma alternativa – com perdão pelo trocadilho, mas como única opção para liderar a humanidade. Ao menos como é indicado na obra, assim, o Secretariado da organização que se tornou o executivo, a Assembleia Geral das Nações Unidas, o poder legislativo e a Corte de Justiça o Poder Judiciário do universo cuja trama se desenvolve. A Organização das Nações Unidas como é constituída hoje não possui poder executivo sobre os países. Ainda que uma intervenção possa ser solicitada pelo Estado membro e que o Conselho de Segurança discuta sobre temas sensíveis, bem como a Assembleia Geral das Nações Unidas não tem o sentido legislativo que a série adota (de legislar e fiscalizar os atos de uma federação soberana), apesar de apresentar-se como principal órgão deliberativo da organização e conduzir discussões de nível multilateral. Quanto à Corte de Justiça, é o principal órgão judicial da organização e atua para solução de conflitos entre Estados, o que não ocorre na série, uma vez que há apenas um governo vigente em Terra e Luna – denominação para a Lua, corpo celeste que também está sob controle da ONU.

ONU alternativa lidera colonização de planetas e outros corpos celestes 

Complexo das Nações Unidas em uma das cidades de Luna (Lua) – Foto: The Expanse – S05EP01. Distribuição: Prime Video

Já imaginou a ONU liderando a colonização da lua ou mesmo de Marte? Se ainda não imaginou, aproveite as linhas a seguir para pensar a respeito. 

De acordo com a obra, na época em que a organização supracitada liderou a colonização, ainda havia vários Estados e por consequência, diversos governos lideravam os mais distintos territórios do planeta, entretanto, ao final do século XXI essa situação mudou com uma pressão ecológica jamais vista anteriormente, isto é, o planeta havia atingido o seu limite. Assim, como já citado anteriormente, a ONU alternativa se formou e continuou com destaque sobre a colonização que já liderava anteriormente, ainda que não de forma executiva e meramente indicada pelos Estados-membros.  

Tratando-se exclusivamente da colonização – ainda que seja quase impensável relacionar a organização atual com este fenômeno, no enredo da obra, a ONU conseguiu colonizar a Lua, Marte e algumas colônias de Júpiter com sucesso, mas Marte pressionou e declarou independência da organização. Assim, se comparado com a realidade, verifica-se que a ONU atual surgiu exatamente em um momento contrário, de descolonização, como indicado no Princípio da Autodeterminação dos Povos constante na Carta das Nações Unidas, tratado elementar da fundação da organização em questão. Sobre o espaço, é recomendável verificar o Tratado do Espaço Exterior (1967) do qual o Brasil é um dos signatários e que prevê a utilização do espaço sideral para fins pacíficos, em prol da humanidade – ainda que tenha surgido no contexto da Guerra Fria.

Forças armadas da ONU alternativa

Sim, até mesmo forças armadas a ONU alternativa possui. Longe da realidade, em que a organização não possui forças armadas e muito menos almeja tal instrumento, na ficção-científica existe a Marinha das Nações Unidas e o Corpo de Fuzileiro Navais das Nações Unidas – e por marinha, entenda como força espacial em que os navios são naves espaciais e não cruzadores, navios ou porta-aviões marítimos.

UNN Agatha King, nave espacial com emblema da ONU alternativa. Foto: The Expanse. Distribuição: Prime Video

Desde sua constituição, a Organização das Nações Unidas não possui um exército permanente, sendo o mais próximo de uma ação militar  as ações de manutenção de paz, nas quais os Estados-membros destacam militares para atuar em nome da instituição. Quando estão nesse tipo de destacamento, os militares utilizam a famosa boina azul com o emblema da referida organização.

Sem fugir totalmente do que o público conhece, a hierarquia é apresentada como um elemento da Marinha e do Corpo de Fuzileiros Navais da ONU alternativa, em The Expanse. O Secretário Geral e o Conselho de Segurança ditam as ações militares neste universo singular, mantendo um resquício de nostalgia. Os roteiristas indicam que a força militar da organização é a maior dentre os atores presentes na obra, ao menos inicialmente. Se é necessário a composição de ativos militares, você pode imaginar que nem mesmo duzentos anos no futuro deixaram a humanidade livre de conflitos escaláveis para uma guerra. Já imaginou um universo alternativo em que os Estados não existissem mais? Uma ONU alternativa como elaborada acima ainda poderia ser chamada de Organização das Nações Unidas? O que você acha?


Para saber mais, verifique (clique no nome):

Tratado sobre Exploração e Uso do Espaço Cósmico 

A exploração espacial sobre uma perspectiva jurídica e ética

A Carta das Nações Unidas

The Expanse (série), no Amazon Prime


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Gustavo Ferreira Felisberto

Eu divido meu tempo livre entre leituras e conteúdo audiovisual, ficção científica é o meu gênero predileto nos dois formatos (apesar de adorar comédia), sendo Duna meu livro favorito, enquanto Twelve Monkeys e Jurassic Park ganham o posto de série e filme que mais gosto.